Um mês após o incêndio que destruiu o telhado da catedral Notre-Dame, em Paris, a comoção causada pelo incidente começa a ceder espaço a um debate não menos passional sobre a reconstrução do setor tragado pelo fogo.
A Assembleia Nacional (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil) acaba de aprovar um projeto de lei que fixa o prazo de cinco anos para a conclusão da obra —como havia dito querer o presidente francês, Emmanuel Macron, logo após o incidente.
Assim, o novo templo seria entregue a tempo das Olimpíadas de Paris, que começam no fim de julho de 2024.
No entanto, especialistas consideraram o anúncio precipitado e assinaram artigo pedindo prudência no planejamento dos trabalhos.
A oposição e mesmo setores da base macronista criticaram duramente artigos do texto aprovado pelos deputados, que deve ser apreciado no Senado no fim de maio.
Um dos mais contestados é o que daria ao Poder Executivo a prerrogativa de criar, via medida provisória (ou seja, sem o crivo prévio do Legislativo), um órgão de gestão da reconstrução do edifício de 850 anos.
Outro ponto sensível é o que autoriza o governo a dispensar várias normas relativas a licitações, proteção ambiental, urbanismo e zeladoria para acelerar a obra.
O ministro da Cultura, Franck Riester, defendeu o governo dizendo que as “flexibilizações de legislação” serão pontuais e que não se trata de “pisotear o direito francês ou europeu na área [da proteção] do patrimônio”.
Para além das entrelinhas do projeto de lei, o tópico mais inflamável da discussão sobre a nova Notre-Dame envolve justamente o quão nova ela deve ser.
Macron afirmou ser partidário de um “gesto arquitetônico contemporâneo” para repensar a “flecha”, uma torre fina e pontiaguda que culminava a mais de 90 m do chão e desapareceu na noite de 15 de abril. O governo logo anunciou o lançamento de um concurso internacional de projetos.
Mas um bloco ruidoso de deputados e de arquitetos (dentre os quais o renomado Jean Nouvel) bate o pé para que o prédio seja reconstruído exatamente como era —além da flecha, a área destruída incluía um “esqueleto” de 1.300 vigas de carvalho que sustentava o telhado de chumbo.
Uma pesquisa mostrou que a população também tende a preferir um xerox da estrutura antiga.
Mais de 50% dos entrevistados disseram querer uma catedral idêntica à incendiada, e apenas 25% apoiam a ideia de uma releitura com traçado e/ou materiais inéditos.
O ministro Riester prometeu realizar uma consulta pública sobre o assunto.
Logo que os bombeiros controlaram as chamas, na manhã seguinte ao incêndio, começaram a surgir croquis com proposições para a recuperação do telhado.
Uma ala sugere um telhado de vidro sob o qual um passeio acolheria visitantes. Na concepção do escritório Godart e Roussel, o percurso, com vista para a cidade, poderia retraçar a história do monumento. A flecha seria reconstruída com painéis envidraçados e telhas de cobre.
Em linha parecida, o estúdio NAB imaginou uma estufa translúcida com canteiros em que haveria ateliês de horticultura, para “conectar o vivo ao sagrado”, e o designer Marc Carbonare desenhou um amplo terraço ajardinado, para aludir à “floresta” de carvalhos que existia ali.
O brasileiro Alexandre Fantozzi, do estúdio Aj6, projetou um telhado e uma nova torre em vitral —material que, na simbologia gótica, aproxima céu e terra.
Os eslovacos do ateliê Vizum foram na mesma toada, com uma flecha finíssima cujo alcance celeste seria prolongado por um feixe de luz potente.
Há ainda esboços de gosto duvidoso, como o de Alexandre Chassang, do ABH Arquitetos, que, sob o argumento de que se deve inscrever “a cultura atual neste patrimônio não intocável”, traçou uma volumosa versão 2.0 da flecha, em vidro —o que permitiria a entrada de luz natural na nave da igreja.
Já o designer Mathieu Lehanneur concebeu uma imensa chama dourada para o telhado do edifício.
Seria, de acordo com ele, uma maneira de “eternizar o instante do drama” ou de “apreender o efêmero”.
Por fim, há propostas minimalistas, como a da “reconstrução” do perímetro consumido pelo fogo apenas com fachos de luz, na linha do que foi feito, após o 11 de Setembro, no local onde ficavam as Torres Gêmeas do World Trade Center.
A ideia, pela qual a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, já expressou simpatia, é que a catedral ganhe essa roupagem cintilante durante a temporada de festas de fim de ano.
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