'Temo pela minha vida', diz turco preso no Brasil após pedido de extradição

Em primeiro depoimento à Justiça, comerciante acusado por Erdogan disse não ser terrorista

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São Paulo

Em seu primeiro depoimento à Justiça, o turco naturalizado brasileiro Ali Sipahi, 31, preso preventivamente após um pedido de extradição do governo da Turquia, disse que teme por sua vida caso seja enviado de volta para a Turquia e que não terá direito a um julgamento justo no país.

“[Na Turquia] As decisões [judiciais] já estão tomadas. Temo pela minha vida. Lá tem torturas, eletrochoque, violações sexuais. Não sei o que vou enfrentar”, afirmou.  

O comerciante Ali Sipahi, 31, após prestar depoimento na Justiça Federal
O comerciante Ali Sipahi, 31, após prestar depoimento na Justiça Federal - Zanone Fraissat/Folhapress

Sipahi, que é dono de um restaurante e está preso enquanto seu pedido de extradição é analisado pelo Supremo Tribunal Federal, foi interrogado pelo desembargador Fernando Quadros da Silva nesta sexta-feira (3), em São Paulo. A Folha acompanhou a audiência.

A procuradoria de Ancara o acusa de ser membro do Hizmet —organização do clérigo muçulmano Fethullah Gülen, desafeto do presidente Recep Tayyip Erdogan e considerado terrorista por seu governo.

Como evidências contra Sipahi, Ancara cita suas atividades no Centro Cultural Brasil-Turquia (CCBT) e na Câmara de Comércio e Indústria Turco-Brasileira (CCITB). Ambas são, de fato, ligadas ao Hizmet, que está presente em mais de 160 países. Segundo seus seguidores, porém, trata-se de um movimento pacífico, focado em educação, tolerância religiosa e projetos assistenciais.

Na audiência, Sipahi se defendeu das acusações de que teria ligações com ações terroristas. Disse que suas atividades na CCITB consistiam em promover o contato entre empresários dos dois países, em parceria com organizações como a Fiesp e a Associação Comercial de São Paulo.

Afirmou, ainda, que trabalhou como tradutor juramentado e que já prestou serviços, inclusive, para o Consulado da Turquia em São Paulo, servindo de intérprete para os guardas de Erdogan em uma visita do presidente turco ao Brasil, em 2013.

“Até 2016 tínhamos uma boa relação com o Consulado. Eles participavam dos eventos do CCBT. A gente jogava futebol todo fim de semana”, afirmou.  

Em 2016, uma tentativa frustrada de golpe na Turquia deixou mais de 260 mortos. Gülen, que hoje vive exilado nos EUA, é acusado por Erdogan de ser o mentor desse golpe —ele nega.

Começou, então, um expurgo contra simpatizantes do Hizmet, que inclui, segundo a ONU e ONGs internacionais, a demissão ou prisão de centenas de milhares de juízes, professores e outros funcionários públicos, sob acusações de terrorismo.

Sipahi (de costas), no início da audiência com o desembargador Fernando Quadros da Silva
Sipahi (de costas), no início da audiência com o desembargador Fernando Quadros da Silva (à esq.) - Zanone Fraissat/Folhapress

Sipahi também foi questionado na audiência sobre um depósito do equivalente a R$ 1.100 que fez em 2013 no banco Asya —que Erdogan fechou em 2015 por ser ligado a gulenistas. Ele afirmou que o valor foi depositado em sua própria conta e era referente a presentes que ganhou em seu casamento. Disse ainda que se tratava de um banco comum. “Cada bairro de Ancara tinha uma agência. Não entendo como alguém pode ser acusado por fazer um depósito em sua própria conta."

Em 2018, a Justiça turca decidiu que correntistas desse banco podem ser considerados membros do Hizmet e, portanto, terroristas.

Sipahi foi preso no aeroporto de Guarulhos, quando voltava das "primeiras férias que tirou em três anos" com a mulher e o filho de quatro anos, em Nova York, Miami e Orlando”, nos EUA. "Fiquei chocado. Estou há 12 anos aqui, nunca fui acusado de nenhum crime. Achei até que estavam fazendo alguma brincadeira comigo", relata.

Questionado se se considera um preso político, respondeu que sim e que é perseguido por suas ideias. “Pensei muito e não acho outro motivo”, afirma. “Eu não fazia nada político. Meu negócio era o comércio. Nem postava nada sobre o presidente nas redes sociais, porque sabia que podia acontecer algo com minha família”, disse.

"Ele é um perseguido político do governo Erdogan", disse seu advogado, Theo Dias. "É um comerciante, uma pessoa com vida absolutamente normal e que foi escolhido entre todos os outros simpatizantes do Hizmet que vivem no Brasil." 

Sipahi contou que veio para o Brasil em 2007, aos 19 anos, para estudar Letras em uma universidade privada. Depois que as atividades na CCITB caíram a quase zero por causa da situação política na Turquia, trabalhou como motorista de Uber e após seis meses abriu, com mais dois amigos, um restaurante de comida turca em São Paulo, que hoje tem três unidades.

Preso há 29 dias, ele disse que está "indignado" com a situação e se emocionou ao contar que tem recebido cartas de apoio de amigos brasileiros e turcos. Questionado por seu advogado se tem a intenção de fugir caso responda ao processo em liberdade, disse que não tem "condição nem intenção" de sair do país. " Não quero ser um foragido. Tenho família, filho, um negócio com 22 funcionários. Sou brasileiro, quero ficar no país onde meu filho nasceu."

Afirmou ainda que a comunidade turca no Brasil se sente em perigo. 

Procurada por conterrâneos de Sipahi, a defensora pública federal Fabiana Galera Severo acompanhou a audiência e disse que o Brasil assinou tratados internacionais com o compromisso de não extraditar pessoas para países em que "sua vida, liberdade e integridade física estão sob risco".

“Esse caso é paradigmático", disse à Folha. "Temos muita preocupação com o uso dessa categoria de terrorismo para escamotear uma verdadeira perseguição política. Terrorismo não é uma imputação que se faça assim, unilateralmente, sem a devida produção de provas naquele caso concreto.” 

Camila Asano, coordenadora de programas da Conectas Direitos Humanos, também acompanhou o depoimento, principalmente "pelo precedente que o caso pode abrir", diz. "A Conectas está muito esperançosa de que a Justiça faça esse trabalho de avaliar se há elementos de perseguição política e de risco à integridade física. Se comprovado isso, a Justiça tem que levar em consideração e impedir que o Brasil seja conivente com regimes autoritários", afirmou.

Não existe um tratado de extradição entre o Brasil e a Turquia, mas mesmo assim o governo turco pode solicitar esse procedimento por meio de uma promessa de reciprocidade —um compromisso de que agirá da mesma maneira em relação a um eventual pedido semelhante do governo brasileiro.

O caso de Sipahi será analisado pelo ministro do STF Luiz Edson Fachin. Os advogados dele têm dez dias para apresentar uma defesa escrita e, na audiência desta sexta, reiteraram o pedido de que ele responda em liberdade enquanto isso. 

Outro lado

Em contatos anteriores com a reportagem, a Embaixada da Turquia no Brasil afirmou que não comenta o caso de Sipahi por ser um processo em andamento, mas enviou uma nota reafirmando que as evidências reunidas até agora apontam Güllen como mentor da tentativa de golpe de 2016. 

"O chamado movimento 'Hizmet' é, na verdade, um nome utilizado para disfarçar as atividades da organização criminosa e terrorista FETÖ. A FETÖ, cujo líder é Fetullah Gülen, é uma organização clandestina sem precedentes em termos de alcance global, ambições e métodos. A FETÖ é uma séria ameaça para a Turquia, assim como para outros países", diz o texto.

Segundo o comunicado, o Hizmet “se disfarçou como um movimento de educação” para se infiltrar no governo e “gradualmente se transformou em uma estrutura operacional sigilosa com o objetivo de transformar a sociedade, assumindo o controle do Estado turco”.

“Fetullah Gülen é o líder de uma organização secreta, altamente hierárquica e antidemocrática (o chamado movimento Hizmet) que tentou o mais violento ataque terrorista da história turca na noite de 15 de julho de 2016”, diz o texto.

A nota afirma que a Justiça turca condenou vários membros da organização por crimes como lavagem de dinheiro, escutas telefônicas ilegais, fabricação de provas, intimidação e chantagem e "milhares de investigações e processos relativos às atividades ilegais de membros da FETÖ ainda estão pendentes".​


O EXPURGO DE ERDOGAN

150 mil
funcionários públicos demitidos

96 mil
pessoas presas

319
jornalistas detidos

190
veículos de mídia fechados

Fontes: ACNUR, Anistia Internacional, Pen International, Stokholm Center for Freedom, Turkey Purge


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