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A gradual deterioração democrática da Hungria

Enquanto Viktor Orbán sufoca instituições e subverte regras, a esquerda não tem sido capaz de construir novos discursos

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A notícia de que se está vivendo sob um governo com tons populistas e autocráticos pode vir de diferentes formas. Em raras ocasiões, essa notícia é recebida da maneira mais prosaica possível: por carta. 

Foi assim que em 2016 —depois de morar 5 anos na Hungria sob o regime do premiê Viktor Orbán— recebi uma carta do governo húngaro contra as políticas migratórias da União Europeia (UE). 

À época, nas avenidas e no metrô da capital húngara, Orbán espalhara cartazes e outdoors criticando a UE: “Você sabia que Bruxelas quer assentamentos de imigrantes ilegais do tamanho de uma cidade na Hungria?”, dizia um deles. “Paremos Bruxelas!”, gritava outro cartaz. 

AÀ frente, ativista com máscara do premiê húngaro, Viktor Orbán, coloca arame farpado contra refugiados, em protesto em Bruxelas -  Yves Herman - 14.set.15/Reuters

Essa retórica antimigratória gerou forte resistência em grande parcela da população. Em reação a um referendo em outubro de 2016 contra as cotas de refugiados determinadas pela UE, milhares foram espontaneamente às ruas em protestos na capital.

Durante o auge da crise migratória, dezenas de voluntários se revezaram dia e noite para prover comida para os refugiados que estavam morando na estação de trem central da cidade à espera do processamento de seus papéis. 

Diversas organizações da sociedade civil, como o Comitê Húngaro Helsinki, fortaleceram seu trabalho em prol de refugiados e migrantes. 

Não obstante, o governo húngaro logrou em 2018 aprovar uma lei criminalizando o trabalho de organizações da sociedade civil que defendessem migrantes, inclusive impondo um imposto de 25% sobre aquelas que apoiassem atividades relacionadas à migração. Hungria acima de tudo, Deus acima de todos.

A resposta húngara à crise de migração é um microcosmo representativo das condições políticas no país centro-europeu. Para entender Orbán e o que ele representa, faz-se necessário entender dois fatores: o papel da esquerda na emergência da força política do premiê e seu projeto iliberal de poder.

Orbán construiu uma retórica nacionalista para angariar votos das regiões mais pobres e rurais. Seu desprezo pela elite intelectual de Budapeste serve bem a essa retórica. 

Entre analistas brasileiros, não se fala sobre o papel da elite política de esquerda em pouco se renovar, o que em parte abriu caminho para a emergência da figura política de Orbán.

Desde 2010, quando ele ganhou 68% dos assentos no Parlamento, a oposição húngara tem patinado para construir um contradiscurso unificado dada a sua fragmentação em diferentes frentes partidárias. 

Muitos húngaros, segundo o economista húngaro László Andor, veem o Partido Socialista, que governou o país entre 1994 e 1998 e depois entre 2002 e 2009, como tecnocrata, corrupto e pouco inspirador —adjetivos que ele considera em parte exacerbados. Qualquer semelhança com o Brasil talvez não seja mera coincidência. 

Segundo, o perigo inédito que Orbán representa para a democracia húngara não está em sua tendência direitista per se, mas porque seu projeto de poder é sufocar as instituições e espaços democráticos com a finalidade de perpetuar-se no poder. 

Orbán cunhou o termo democracia iliberal, quiçá nesse sentido. Mantem-se a aparência da democracia majoritária com eleições periódicas, mas sufoca-se a possibilidade de emergência de novos discursos. 

A Hungria apresenta uma história de deterioração gradual, persistente e consciente de espaços e instituições democráticas, com ataques recorrentes à imprensa, à sociedade civil e a defensores de grupos minoritário.

O Executivo húngaro domina o Parlamento com uma supermaioria e lotou o Poder Judiciário, inclusive a Corte Constitucional, de aliados. 

Na Hungria sob Orbán, atos coloquiais como ir a um concerto em uma sinagoga em um evento contra discurso antissemita, estudar em uma universidade progressista ou organizar um festival de cinema LGBT adquiriram um novo significado político: passaram a implicar lutas cotidianas pela manutenção de espaços onde se podia respirar ares democráticos. 

Fiz mestrado e doutorado na Central European University (CEU), centro de excelência intelectual com alunos de todo o mundo. Não foi apenas uma experiência acadêmica. Estudar ali adquiriu um novo significado político, de luta pela liberdade acadêmica

A CEU mudou parte de seu campus para Viena, na Áustria, depois de se tornar alvo de uma legislação apelidada no Parlamento de Lei CEU. O objetivo era pôr fim à balbúrdia nas universidades

Utilização do poderio econômico do governo para dizimar críticos também é prática recorrente nos ataques à liberdade de imprensa.

A húngara Zselyke Csáky, diretora da organização Freedom House para a Europa, relata como Budapeste nega seletivamente licenças para empresas de rádio críticas ao governo, facilita o monopólio do setor de mídia e concede contratos públicos a aliados.

Boa parte das informações confiáveis que eu lia vinha da mídia internacional com correspondentes residentes na Hungria.

Viver como LGBT em Budapeste possibilitava notar outras camadas do iliberalismo húngaro. Era conviver com notícias de ataques lgbtfóbicos ou o medo de dar as mãos na rua. Era ter de marchar na parada LGBT na principal avenida de Budapeste com medo de contramanifestantes usando a insígnia do partido Jobbik, de extrema direita.

Em cinco anos, quase todos os meus amigos mais próximos deixaram a Hungria. Muitos deles judeus, muitos deles LGBTs (outros tantos os dois). Migraram para países como Alemanha e Reino Unido. LGBTs que ficaram na Hungria têm trabalhado arduamente para manter outros espaços de resistência, como festivas de cinema LGBT.

A Hungria não é um caso isolado. À esquerda (vide Venezuela) e à direita (vide Polônia), podemos verificar a erosão de instituições democráticas. O que diferencia a Hungria é ser um caso em que um projeto iliberal de democracia tem sido extraordinariamente bem-sucedido, à custa da própria democracia. 

Devemos evitar os perigos de uma história unidimensional. Na Hungria e por aqui, a história é um emaranhado de nuances. Orbán possui um projeto iliberal de poder, e isso é inaceitável. Usa seu poder político para sufocar instituições independentes dizendo-se representante da vontade de todo o povo verdadeiramente húngaro e subvertendo regras institucionais.

No entanto, a esquerda húngara não tem sido capaz de galvanizar esse momento e construir novos discursos. O que resta é a pujança da democracia húngara no sentido mais pé no chão, da força da sociedade civil em criar formas de denunciar o desmantelamento das instituições democráticas. 

Na Hungria e por aqui, o melhor remédio para a falta de democracia é mais democracia —não somente no âmbito das instituições, mas na prática do diálogo e no respeito pelo outro. Porém, sem a construção de novos discursos políticos que revertam a erosão de instituições e ganhar eleições, o futuro parece ilberal.

 

Advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação

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