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Após um século, Tratado de Versalhes influencia crises atuais

Cúpula do G20 reflete questões já presentes nas negociações que puseram fim à 1ª Guerra

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São Paulo

A cerimônia durou só 37 minutos das três horas que haviam sido estimadas para que 27 delegações assinassem o papel. Para o jornal The New York Times, parecia uma reunião de negócios, algo vulgar dado o trabalho por trás da confecção de um dos principais instrumentos diplomáticos do século 20: o Tratado de Versalhes.

Os líderes Lloyd George, Orlando, Clemenceau e Wilson no início da conferência em Versalhes 
Os líderes Lloyd George, Orlando, Clemenceau e Wilson no início da conferência em Versalhes  - 19.jan.1919/AFP

Firmado há cem anos para estipular os termos da paz entre os Aliados e a Alemanha, após a Primeira Guerra Mundial (1914-18) ter deixado 20 milhões de mortos, ele segue influenciando o mundo.

Uma prova: a reunião do G20, que começa nesta sexta (28).

Em Osaka, o presidente Donald Trump terá mais um tenso encontro com seu colega russo, Vladimir Putin. Depois, tentará costurar um acordo comercial com a desafiadora China de Xi Jinping. E o risco de guerra no Oriente Médio permeará discussões.

Esses temas passam por aquela tarde de 1919 na magnífica Galeria dos Espelhos, na sede do antigo assento da realeza francesa, perto de Paris.

Os chineses nunca perdoaram os americanos por darem uma antiga colônia alemã em seu território para os japoneses. O nacionalismo sedimentou-se, ganhou corpo no Partido Comunista e vive na China do século 21 de Xi.

Já os russos, liderados à época por Vladimir Lênin, foram deixados de fora por terem conduzido suas próprias negociações de paz com o Império Alemão em 1918.

Isso quase permitiu a Berlim ganhar a guerra na frente ocidental, que acabou perdendo em novembro daquele ano. O ressentimento entre Moscou e o Ocidente só fez crescer: a aliança desconfiada na Segunda Guerra, a Guerra Fria, os choques da era Putin.

E o Oriente Médio já havia sido picotado em acordos paralelos entre França e Reino Unido. O delegado britânico Harold Nicolson escreveu, famosamente, sobre como encontrou “aqueles homens ignorantes” criando o Iraque a partir de um mapa vazio.

As tensões israelo-palestinos passam por um acordo secreto anterior, de 1916.

Ao fim, tudo integra uma panela de pressão cuja válvula que ameaça explodir no momento é o Irã dos aiatolás.

E Versalhes apresenta lições para o mundo de hoje.

Líderes posam para foto da cúpula do G20 em Osaka, no Japão
Líderes posam para foto da cúpula do G20 em Osaka, no Japão - Brendan Smialowski/AFP

A negociação do tratado, iniciada em janeiro de 1919, excluiu Berlim. Para os principais vitoriosos na Europa, França e Reino Unido, o texto seria desenhado para cortar na carne os derrotados, como defendia o então premiê britânico David Lloyd George.

Ele havia sido eleito com a promessa de obter o equivalente a R$ 4,6 trilhões atuais só para seu país. A França era liderada pelo implacável premiê Georges Clemenceau.

Ele exigia não só retomar a Alsácia perdida para os alemães na guerra de 1871, mas também a região do Sarre, além de transformar a Renânia num Estado-tampão.

Era compreensível: a guerra ocorreu largamente em solo francês, e o país, junto à Alemanha, contou o maior número de mortos, quase 4,5% de sua população.

Além disso, Versalhes mirava Brest-Litovsk, o brutal acordo em que os bolcheviques cederam 25% do território e 20% da população para ter a paz com os alemães em 1918.

Tal voracidade foi refreada em parte por Woodrow Wilson, presidente dos EUA.

Ele advogava uma política mais inclusiva. Temia o fomento de um novo conflito, o que de fato veio a ocorrer meras duas décadas depois.

O delegado britânico John Maynard Keynes, um dos mais influentes economistas do século 20, deixou a negociação e escreveu um livro, “As Consequências Econômicas da Paz”, na qual criticava a “paz de Cartago” —alusão à destruição cartaginense promovida por Roma.

Ainda assim, a Alemanha pagou bastante.

Perdeu 13% de seu território e 10% de sua população. Dois anos depois do tratado, foi estipulada a compensação: o equivalente a quase R$ 1,7 trilhão hoje. Muito, mas uma fração do que queriam os Aliados europeus.

Além disso, o país sofreu sanções comerciais e teve sua capacidade militar limitada a um exército de 100 mil homens (eram 3,8 milhões no início da guerra, em 1914), sem direito a força aérea.

Isso fomentou um dos mitos fundadores do nazismo liderado pelo ex-cabo Adolf Hilter.

Segundo ele, a humilhação teria sido a responsável pela ruína econômica e política da década de 20, uma decorrência lógica da “traição de novembro”, quando políticos teriam persuadido o imperador a abandonar uma guerra que ainda poderia ser ganha.

É uma mistificação. Os anos pós-Versalhes registraram uma crise tão aguda que até hoje se fala em “hiperinflação em níveis alemães”. As reparações aqui tinham mais valor simbólico, tanto que foram renegociadas até serem deixadas de lado por acordos em 1932.

O problema maior é que a economia de guerra parou, e todos os empréstimos feitos para movê-la foram a calote.

Ainda assim, a República de Weimar (referência à cidade em que foi fundada) sobreviveu. 

Mas a fragmentação partidária e a ascensão do antigo chefe militar Paul von Hindenburg à Presidência em 1925 minaram o sistema político.

Por fim, veio a crise de 1929, que derrubou a economia do Ocidente. O caminho estava aberto para o nazismo.

Ignorou-se na retórica o fato de que a guerra fora iniciada pelos alemães, ainda que o intrincado sistema de alianças que levou ao conflito tivesse culpados de todos os lados.

Isso não retira, contudo, o significado de Versalhes denunciado por Keynes. O ciclo de vinganças parecia infinito: a Galeria dos Espelhos havia assistido à criação do Império Alemão após a derrota da França em 1871, e o vagão de trem usado pelos Aliados na rendição em 1918 foi trazido por Hitler para assinar a conquista dos franceses em 1940.

Tanto que as coisas foram diferentes no segundo fracasso alemão, em 1945: os Aliados fizeram questão de que a derrota nazista fosse total e, a partir daí, trabalharam na reconstrução do país —assim como os rivais soviéticos, do outro lado, com resultados bem diversos.

O que a visão mais magnânima esposada pelos EUA de 1919 poderia ensinar para os líderes de hoje? A contar com a retórica beligerante de Trump, as aventuras militares de Putin e o potencial de Xi, muita coisa, na hipótese de as crises saírem de controle.

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