Eleição na Guatemala coloca em jogo futuro de órgão anticorrupção no país

Atual presidente fixou data para fim da Cicig, mas população quer continuidade de comissão

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Buenos Aires

As eleições presidenciais na Guatemala, cujo primeiro turno ocorreu neste domingo (16), despertam o interesse da comunidade internacional por alguns temas.

O principal deles é a imensa quantidade de guatemaltecos que têm deixado o país para tentar entrar nos EUA.

Isso ocorre porque a nação centro-americana integra, junto a El Salvador e Honduras, o Triângulo do Norte, faixa territorial marcada pela violência de facções criminosas —as chamadas "maras".

Esses grupos, que já contam com mais de 80 mil membros nos três países, obrigam grande parte da população camponesa, vítima de extorsões, assassinatos e recrutamentos de menores, a fugir, colaborando para a crise da migração ilegal que afeta México e EUA.

A candidata à Presidência da Guatemala Sandra Torres durante comício em Coatepeque
A candidata à Presidência da Guatemala Sandra Torres durante comício em Coatepeque - Luis Echeverria - 2.jun.19/Reuters

Outro tema em jogo no pleito deste ano, que será decidido entre a centro-direitista Sandra Torres e o direitista Alejandro Giammattei, é menos midiático.

A Guatemala é um país com altos níveis de corrupção. E foi ali que, em 2007, com a aprovação do Congresso, instalou-se a Cicig (Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala), órgão independente, apoiado pela ONU, composto por colaboradores e magistrados guatemaltecos e estrangeiros para investigar casos de corrupção no país.

A Cicig não faz justiça por conta própria —suas denúncias são levadas para a Procuradoria guatemalteca.

A propaganda que trouxe para as causas, porém, chamou a atenção da população para o problema, e, a partir de 2015, quando o órgão revelou seus casos mais importantes, fez estalar uma espécie de "primavera guatemalteca", levando manifestantes, principalmente jovens, às ruas.

Naquele ano, a Cicig revelou um complexo sistema de corrupção que envolvia o então presidente do país, Otto Pérez Molina, e vários de seus apoiadores.

O Congresso tirou a imunidade do presidente, e um julgamento começou a se armar. O impeachment estava às vésperas de ser votado, mas Molina decidiu renunciar antes, entre outros motivos porque a pressão das ruas era enorme. Ainda assim, foi julgado, condenado e hoje cumpre prisão domiciliar.

Assim, a Cicig ganhou prestígio, e o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, a definiu como um mecanismo eficaz de cooperação internacional. Começou-se a estudar sua implementação em outros países da América Central.

Porém, quando Jimmy Morales foi eleito presidente da Guatemala, em 2015, a comissão começou a enfrentar obstáculos. A princípio, o novo mandatário era a favor do trabalho da comissão, não apenas porque sua bandeira durante a campanha era atacar a corrupção, mas porque sua vitória se deveu em parte às investigações promovidas pelo órgão contra o candidato governista.

Em 2017, no entanto, a Cicig começou a apontar irregularidades cometidas por familiares de Morales, além de supostas contribuições ilícitas durante a campanha eleitoral do presidente.

Morales, então, passou a travar o trabalho do grupo e a sugerir que a comissão estava invadindo a soberania jurídica da Guatemala. Em seguida, expulsou magistrados estrangeiros do país e confiscou vistos. No começo de 2019, fixou o fim das atividades do órgão para setembro.

Os debates eleitorais têm incluído a continuidade do trabalho da Cicig, e muitos guatemaltecos foram às ruas pedir que o órgão permanecesse no país. Pesquisa recente indica que mais de 70% apoiam a continuidade do trabalho do órgão.

Tanto Torres quanto Giammattei, entretanto, não oferecem boas perspectivas para que a comissão volte a atuar depois de setembro.

Giammattei já se pronunciou favoravelmente à extinção da comissão. "A Cicig já fez seu trabalho e seu mandato já acabou. Combateu a corrupção colocando gente na prisão, mas a corrupção não se combate apenas colocando criminosos atrás das grades. É preciso agora corrigir o sistema", disse, em um dos discursos de campanha.

Ele afirma que a corrupção "tem de ser combatida por guatemaltecos e de modo sistêmico", porém, não apresentou um projeto claro para isso.

O candidato Alejandro Giammattei após entrevista coletiva na Cidade da Guatemala
O candidato Alejandro Giammattei após entrevista coletiva na Cidade da Guatemala - Orlando Estrada - 17.jun.19/AFP

Já Torres não definiu claramente sua posição sobre a Cicig, e essa hesitação pode custar votos no segundo turno, a ser realizado em 11 de agosto.

A equipe da ex-primeira-dama do país durante o governo de Álvaro Colóm (2008-2012), de quem se separou em 2011, avalia a melhor estratégia e promete estudos sobre o órgão caso seja eleita.

Apesar de o apoio à comissão parecer favorável à campanha de Torres, a candidata da Unidade Nacional da Esperança enfrenta investigações por suposto caixa 2.

Torres, 63, do partido Vamos, concorre pela segunda vez ao posto. Empresária que dirige um grupo de indústrias "maquiladoras" —que montam produtos com base em elementos importados—, ela é uma candidata de centro-direita, com posições contrárias ao aborto e ao matrimônio igualitário.

Por outro lado, entre suas propostas para interromper o fluxo migratório para o norte não está o uso da força nem o reforço de controles na fronteira, mas mais investimento em saúde, educação e criação de empregos, além de projetos em regiões onde há mais violência.

Torres também promete ampliar os sistemas de assistência social e criar novos, como o Mi Familia Progresa, que entregaria cestas básicas para famílias no campo desde que matriculem suas crianças na escola. A proposta também propõe investimentos em refeitórios gratuitos nas cidades.

Tem, ainda, a seu favor, o fato de ser conhecida nacionalmente e ter percorrido boa parte do país durante o período em que o ex-marido foi presidente.

Já o ultradireitista Alejandro Giammattei, 63, que atuou como chefe do sistema penitenciário guatemalteco em 2006, é conhecido pela atuação violenta na repressão a motins em cadeias.

Alguns dos episódios chefiados pelo candidato deixaram dezenas de mortos, pelos quais é investigado. É a quarta vez que concorre à Presidência.

Seu discurso, além de conservador nos costumes, está baseado no aumento da repressão na área de segurança e no combate às "maras" por meio da força —Giammattei quer introduzir a pena de morte apenas para integrantes dessas facções.

Num país que vive uma crise humanitária devido ao enfrentamento desses grupos, o discurso de Giammattei tem força junto a uma parte da população que não crê em acordos de paz ou tréguas com as "maras" e quer os membros dos grupos na cadeia.

A eleição fragmentada em 19 candidaturas explica, em parte, número relativamente baixo de votos que cada um dos finalistas atingiu. Torres obteve 25,6% dos votos, enquanto Giammattei conquistou 13,9%. Houve 56% de participação.

Em 12 anos de atuação na Guatemala, a Cicig levou adiante mais de cem investigações que terminaram em 60 denúncias de corrupção entregues à Procuradoria local.

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