EUA precisam de lei federal que proteja gays da discriminação, diz casal pioneiro

Greg Bourke e Michael DeLeon foram partes no caso em que Suprema Corte legalizou casamento gay nos EUA

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São Paulo

Juntos há 37 anos, Greg Bourke e Michael DeLeon, ambos de 61 anos, foram um dos casais cujo processo chegou à Suprema Corte americana, fazendo com que esta reconhecesse o direito ao casamento gay nos EUA.

Na mesma semana em que essa decisão histórica completa quatro anos, relembram-se os 50 anos da revolta de Stonewall, que se tornou um marco da luta da população LGBT por direitos. 

Para Bourke e DeLeon, católicos que moram no Kentucky, no conservador sul americano, a aceitação dos gays vem avançando no país, mas falta uma lei federal que proteja os LGBT de discriminação no mercado de trabalho, na habitação e em acomodações públicas, como restaurantes e hotéis —no Brasil, o Supremo Tribunal Federal decidiu há duas semanas por equiparar os crimes de homofobia e transfobia ao de racismo, até que o Congresso Nacional aprove lei sobre o tema.

Como foi a experiência de ser parte em um caso que chegou à Suprema Corte? Qual foi a motivação de vocês para isso?

GB - Nós fomos os primeiros em um estado do sul a abrir um processo questionando uma proibição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo em uma Constituição estadual [uma emenda à Constituição do Kentucky definiu o casamento como entre um homem e uma mulher em 2004].

Nossa principal motivação foram nossos filhos. Estamos juntos há 37 anos e temos dois filhos adotivos [Isaiah, 21, e Bryson, 20]. No estado do Kentucky duas pessoas que não são casadas não podem adotar crianças juntas. Então, quando nós adotamos, só o nome do Michael ficou na certidão deles. Isso me deixava meio desprotegido caso algo acontecesse ao Michael. Sentimos que estávamos em uma situação em que precisávamos forçar o estado a reconhecer nosso casamento legal.

Greg Bourke (esq.) e Michael DeLeon, casal do Kentucky cujo caso foi um dos que deram origem à decisão da Suprema Corte legalizando o casamento gay nos EUA
Greg Bourke (esq.) e Michael DeLeon, casal do Kentucky cujo caso foi um dos que deram origem à decisão da Suprema Corte legalizando o casamento gay nos EUA - Arquivo Pessoal

O que seus filhos acharam do processo, eles sabiam o que estava acontecendo?

 

MD - Eles tinham 13 e 14 anos na época, então nós perguntamos a eles. Eles ficaram surpresos, porque eles achavam que já éramos casados, mas, quando entenderam, nos apoiaram e participaram de todas as audiências judiciais —na verdade eles também eram partes no processo.

Vocês acham que faz diferença se um país ou estado reconhece o casamento gay por via judicial ou se isso acontece por um processo legislativo?

MD - O povo da Irlanda votou por aprovar o casamento gay e acho que eles são o único país no mundo que fez isso [o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi aprovado em referendo no país em 2015, no único caso de aprovação por voto popular; em outros países, porém, houve aprovação de leis similares via Parlamento]. Eu acho que quando você tem uma população discriminada, a via judicial é o único jeito de avançar enquanto estamos todos ainda vivos. 

GB - As leis do casamento sempre foram feitas em nível estadual. Mas o casamento gay se tornou uma questão diferente e a Suprema Corte aceitou o caso porque eles reconheceram que as pessoas nos EUA não estavam sendo tratadas de forma igualitária perante a lei, então isso era uma questão constitucional. 

Agora, alguns estados já aprovaram leis que protegem a população LGBT de discriminação no mercado de trabalho, na habitação e em acomodações públicas. Nosso estado, o Kentucky, não tem isso. Temos esse tipo de proteção em algumas cidades ou áreas, mas se a gente for ao condado do lado do nosso podemos ir a um restaurante e sermos expulsos. 

Então nossa luta tem sido tentar com que mais estados aprovem leis que protejam a população LGBT nessas três áreas. Hoje temos 21 estados dos 50 que têm esse tipo de lei, mas provavelmente não vai acontecer no Kentucky nos próximos 50 anos.

Existe um movimento nacional por uma legislação federal —há um projeto de lei que se chama Equality Act [Ato da Igualdade] que existe há algum tempo e foi aprovado na Câmara, mas nosso Senado se recusa a discuti-lo e nosso presidente certamente não o sancionaria. Mas eu acredito que provavelmente chegaremos lá nos próximos dez anos.

No entanto, há coisas preocupantes acontecendo. Vários estados estão implementando leis que desafiam Roe v. Wade [decisão da Suprema Corte em favor de legalizar o aborto, de 1973]. Existe uma preocupação de que a Suprema Corte atual, conservadora, derrube a decisão. E se isso acontecer, o que vem depois?

A população LGBT já vive com medo de que a Suprema Corte aceite ouvir um desafio à decisão sobre o casamento gay e decida derrubá-lo.

Vocês sentiram alguma mudança em suas vidas desde a eleição de Trump?

MD - Vivemos em uma bolha, em uma cidade progressista [Louisville, Kentucky], temos empregadores que nos apoiam, assim como nossos amigos e família. Mas tem uma insegurança latente. Falamos para nosso filho, cujo passaporte venceu, que é bom ter um passaporte válido, pois fazemos piada sobre ter que fugir do país. Ao menos esperamos que seja uma piada, mas ter esse tipo de pensamento mostra que há uma desconfiança em relação a nosso governo.

[Trump] está indo atrás dos transgênero, seu governo atacou os transgênero. Pela lógica, você pensa, quem são os próximos? Os gays. Os transgênero já quase não tinham direitos e ele está os tirando. Se ele fizer isso e ninguém gritar algo o suficiente, será que ele não vai na sequência atacar as lésbicas, os gays e os bissexuais?

GB - Por outro lado, a aceitação do casamento gay aumentou desde a decisão da Suprema Corte. Gays e lésbicas casados agora se apresentam dessa forma, isso se tornou normal em grandes cidade e até em áreas rurais. 

Nós vamos à mesma igreja católica há 32 anos, sempre fora do armários e ativos na comunidade, e a receptividade na nossa paróquia e na Igreja aos LGBT mudou muito. Não estou dizendo que é maravilhoso, mas já melhorou bastante.

 
Greg Bourke (dir.) e Michael DeLeon com os filhos Isaiah e Bryson em frente à Suprema Corte em Washington
Greg Bourke (dir.) e Michael DeLeon com os filhos Isaiah e Bryson em frente à Suprema Corte em Washington - Arquivo Pessoal

Vocês acham que os jovens LGBT hoje enfrentam desafios diferentes dos que vocês enfrentaram?

MD - Vou usar um exemplo da nossa igreja. Uma mãe me parou e disse que seu filho tinha saído do armário, e disse que ele se sentia encorajado por sempre ter nos visto. Quando a gente era jovem, não havia gays na igreja em que pudéssemos nos espelhar. 

GB - Quando a gente saiu do armário, nos anos 70, ainda era um crime no Kentucky ser homossexual. Você tinha que guardar segredo e ter cuidado ao contar para as pessoas. Não havia proteção nenhuma. 

MD - No clima em que a gente cresceu, sair do armário era um grande esforço. Talvez hoje não seja tão difícil. Naquela época não tinha um abrigo para você ir ou um número de telefone de apoio para ligar.

GB - Os pais hoje também são muito mais abertos a ter um filho LGBT enquanto há 40 anos isso era raro. As coisas estão melhores, acho que nunca vai ser fácil mas é mais fácil de navegar hoje porque há sistemas de apoio.

Stonewall é um símbolo importante para vocês? A maioria dos países não tem um local ou data simbólico da luta da comunidade LGBT como os EUA têm.

GB - É muito importante. Foi um ato de verdadeira coragem e bravura enfrentar uma polícia e um governo opressores, foi memorável. Michael e eu vamos a Nova York celebrar os 50 anos de Stonewall e participar da Parada do Orgulho LGBT lá. 

Stonewall tem atraído pessoas de todo o país, os gays vão visitar como se fosse um altar. É um marco histórico do qual temos muito orgulho.

Entenda: Stonewall foi revolta que marcou movimento gay

Frequentadores do bar gay Stonewall Inn, em Nova York, reagiram a uma batida policial na noite de 28 de junho de 1969, e entraram em confronto com a polícia. Os policiais que haviam invadido o bar ficaram refugiados dentro do local enquanto cerca de 400 pessoas se rebelavam nas ruas. Os protestos duraram cinco dias e deram impulso à criação de movimentos organizados pelos direitos dos gays. Hoje, o local em que ficava o bar é um monumento nacional.

Entenda: O caminho do caso de Greg Bourke e Michael DeLeon

mar.2004

Bourke e DeLeon se casam em Ontário, no Canadá

nov. 2004

População de Kentucky aprova em referendo emenda constitucional que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo

jul.2013

O casal entra com processo, Bourke vs. Beshear, no tribunal distrital, pedindo que o estado do Kentucky reconheça seu casamento

fev.2014

O tribunal distrital decide em favor de Bourke e DeLeon, e o governador do Kentucky recorre ao tribunal de circuito

nov.2014

Tribunal de circuito consolida o caso de Bourke com outro, Love vs. Beshear, e derruba a decisão anterior, decidindo que o veto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo no Kentucky não viola a Constituição

jan.2015

A Suprema Corte dos EUA junta os dois casos de Kentucky com outros no processo que fica com o nome de Obergefell v. Hodges

jun.2015

A Suprema Corte decide que todos os estados têm que permitir e reconhecer casamentos entre pessoas do mesmo sexo, revertendo a decisão do tribunal de circuito

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