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Edward Luce

Chance de Trump sofrer o impeachment morreu após depoimento de Mueller

Apesar das revelações contra o presidente, Congresso parece incapaz de fazer o assunto avançar

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Edward Luce
Financial Times

Nancy Pelosi, a presidente democrata da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, sepultou as esperanças de um impeachment contra Donald Trump meses atrás. Na quarta-feira (24), Robert Mueller, que serviu como procurador especial na investigação sobre o presidente, garantiu que o cadáver não voltasse à vida.

Em um depoimento singularmente parcimonioso, Mueller se recusou repetidamente a expressar de forma clara a substância de seu relatório de 448 páginas. As frases que ele mais repetiu foram "isso não é da minha alçada", "por favor se refira ao texto" e "você pode poderia repetir a pergunta?". 

 
O presidente dos EUA, Donald Trump, discursa na cerimônia de posse do novo secretário de Defesa, em Washington
O presidente dos EUA, Donald Trump, discursa na cerimônia de posse do novo secretário de Defesa, em Washington - Nicholas Kamm/AFP

A recusa de Mueller em se tornar testemunha de acusação foi ajudada pela desorganização com que os legisladores democratas apresentaram suas muitas questões.

Se o partido tivesse desejado extrair mais suco do limão de Mueller, os legisladores teriam cedido seu tempo a um único questionador. Mas cada um deles preferiu desfrutar de seus cinco minutos de televisão. 

O resultado foi uma audiência desperdiçada que reforçou a impressão de desordem nas fileiras democratas. Só um ato espetacular de autoflagelação de Trump —o que é sempre perfeitamente possível— poderia ressuscitar o impeachment agora.

A questão é: por que um relatório tão fortemente incriminador terminou sem efeito? No topo da lista de respostas está a disposição de perdoar de Mueller, digna de um monge trapista.

O relatório dele mencionou dez atos claros de tentativa de obstrução da justiça da parte de Trump, entre os quais esforços para encerrar a investigação.

Mas Mueller optou por seguir orientações de funcionários do Departamento da Justiça redigidas por subordinados de Richard Nixon e atualizadas na era Bill Clinton —os dois últimos presidentes americanos submetidos a processos de impeachment.

As orientações sugerem que um presidente em exercício tem imunidade e não pode ser processado. Mueller poderia ter ignorado os controversos memorandos.

O ex-procurador especial Robert Mueller presta juramento antes de seu depoimento na Cãmara na quarta (24)
O ex-procurador especial Robert Mueller presta juramento antes de seu depoimento na Câmara na quarta (24) - Alex Brandon - 24.jul.19/Reuters

Em suas respostas na quarta-feira, Muller se esquivou, tergiversou e empregou jargões em latim para evitar dizer qualquer coisa que pudesse ser usada como citação nos telejornais noturnos.

Ele chegou até mesmo a mostrar deferência às afirmações republicanas de que a investigação do FBI (a polícia federal americana) havia sido uma trama tecida por funcionários públicos tendenciosos e agentes de Hillary Clinton.

Mueller poderia ter esmagado essas teorias de conspiração ou instilado vida em seu relatório. Em lugar disso, optou por sugar toda a emoção que ele possuía. 

Sua postura fez lembrar o momento em que o presidente Dwight Eisenhower disse ao seu secretário de Imprensa: "Não se preocupe, Jim. Se o tema surgir, eu os confundirei", depois de falar longamente sobre o assunto de maneira privada. 

É justo apontar que Mueller já havia feito o que foi apontado para fazer. Tendo recebido grande volume de provas, a escolha quanto a apanhar o bastão ou não cabia ao Capitólio. Pelosi se recusou firmemente a fazê-lo.

A posição dela sobre isso mudou e oscilou diversas vezes. Inicialmente, ela afirmou que o Congresso deveria aguardar o relatório com trechos censurados, que demorou um mês para chegar. Depois, disse que era preciso aguardar o depoimento de Mueller, o que estendeu o prazo por mais dois meses.

Em outros momentos ela disse que Trump faria um "autoimpeachment". Com isso ela queria dizer que ele perderia a presidência no ano que vem. Mas o tempo todo Pelosi calculava que iniciar um impeachment beneficiaria Trump, como beneficiou Clinton.

Ela está caminhando no fio da navalha entre apaziguar a base liberal irada, que quer processar Trump, e irritar o público americano que perdeu interesse na investigação há muito tempo.

No começo do mês, 95 deputados democratas votaram a favor de abrir o debate sobre o impeachment de Trump —quase 40% da bancada controlada por Pelosi. O número quase dobrou ante o total de alguns meses atrás. Mas o público dos Estados Unidos caminha na direção oposta.

Apenas 21% dos americanos apoiavam o impeachment, de acordo com uma pesquisa recente. É difícil acreditar que muita gente tenha lido o relatório de Mueller. Dezenas de legisladores admitiram não tê-lo feito. O depoimento de Mueller provavelmente foi a chance final de Pelosi de educar os americanos sobre o relatório via telas.

O último —e maior motivo— para que o impeachment tenha morrido é Trump. Ele matou o impeachment direta e indiretamente. Quanto à primeira parte da afirmação, Trump sempre descreveu a investigação como uma caça às bruxas conduzida por procuradores democratas "raivosos" e alimentada pelo que ele chama de Estado profundo.

Quase tudo isso é ficção. Mas quanto mais uma mentira é repetida, maior a chance de que seja aceita. William Barr, o secretário da Justiça de Trump, ajudou nessa narrativa ao descrever erroneamente o relatório de Mueller como tendo inocentado o presidente.

A razão indireta é igualmente importante. Trump foi eleito porque a política dos Estados Unidos é fortemente disfuncional. Os órgãos políticos americanos já não funcionam como deveriam.

Na quarta-feira, o primeiro ramo do governo dos Estados Unidos ofereceu um caso claro de quebra institucional. O Congresso se provou incapaz de forçar o Executivo a prestar contas. Como Trump, os legisladores estavam ocupados demais tentando mostrar a cara na TV.

Tradução de Paulo Migliacci  

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