Descrição de chapéu The New York Times

Combate às 'big techs' une direita e esquerda nos EUA

Defesa da liberdade de expressão e questões antitruste têm gerado alianças improváveis

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Nellie Bowles
San Francisco | The New York Times

Não era previsível que Steve Hilton, apresentador de um programa conservador na rede de TV Fox News, e Tim Wu, professor de direito na Universidade Columbia e assessor da Casa Branca no governo Obama, se dessem bem.

Mas quando se encontraram por acaso em um coquetel em Washington, no ano passado, não demoraram a descobrir que tinham algo de surpreendente em comum: a crença de que chegou a hora de dividir as grandes empresas de tecnologia.

"Pensávamos da mesma forma", disse Hilton.

Wu, que também escreve artigos de opinião para o New York Times, concorda. "Há eleitorados incomuns surgindo", disse. Wu terminou por ir a "The Next Revolution", o programa de Hilton, para uma entrevista cordial.

O movimento antitruste foi reanimado pela hostilidade bipartidária direcionada às grandes empresas de tecnologia, que alcança não só os legisladores mas também os mais elevados firmamentos da direita e da esquerda.

De um lado temos a esquerda progressista, cujos membros ficaram horrorizados com a maneira pela qual o Facebook tratou as campanhas russas de desinformação em favor do presidente Donald Trump e a consolidação do poder do Vale do Silício.

Do outro, a direita pró-Trump, cujos membros veem o poder das empresas de mídia social para bloquear conteúdo como uma forma de censura e se preocupam com o fato de as artérias da comunicação estarem sob o controle de jovens liberais.

A causa comum gerou alianças muito estranhas. A esquerda e a direita agora muitas vezes empregam argumentos parecidos contra as empresas de tecnologia, nos programas noticiosos de TV a cabo e em audiências do Congresso.

Conservadores agora participam de conferências que tipicamente só atraíam liberais, e liberais concedem entrevistas em programas de TV conservadores.

"Para espanto de muitos observadores, as pressões crescentes por reforma do sistema antitruste fluem das duas pontas do espectro político", escreveu Daniel Crane, professor de direito na Universidade de Michigan em estudo intitulado "Política Antitruste Não Convencional".

Agora, as pessoas que formaram essa compreensão mútua precisam descobrir se podem de fato conviver.

Não é fácil. Muitas vezes, a situação é embaraçosa.

"Creio que devemos manter o ceticismo", disse Sabeel Rahman, presidente do Demos, um instituto de pesquisa progressista, e professor associado de direito na Brooklyn Law School. "Que coalizões deveríamos apoiar? Quem constitui o 'nós'?"

Rahman disse que encara os novos aliados conservadores com cautela, e que os progressistas do movimento precisam ser cautelosos. Sim, os dois lados desejam tirar o poder das mãos das grandes empresas de tecnologia —mas em seguida os dois lados precisam chegar a um acordo sobre a que mãos o poder será transferido.

"Como operacionalizar a coisa? Quem funcionará como moderador? Os novos aliados agirão de boa-fé?", questiona Rahman. "O problema está nos detalhes."

O detalhe no caso é quem exatamente deveria estar no comando de uma companhia como o Facebook, se a função for tirada de Mark Zuckerberg. Ambos os lados podem desejar controle por terceiros, por alguma espécie de corregedor, mas não parece haver acordo para além disso.

"A maioria das pessoas que está participando da discussão na verdade não extrapolou o que isso significa", disse Katy Glenn Bass, diretora de pesquisa do Knight First Amendment Institute, organização que defende a liberdade expressão.

Regulamentar o discurso online não é exclusivamente uma preocupação do movimento antitruste, mas diferentes vertentes estão se entrelaçando. Os críticos argumentam que as grandes empresas de tecnologia precisam ser divididas ou regulamentadas porque suprimem a liberdade de expressão.

Bass, que está organizando um simpósio no Knight Institute em outubro sobre a gigantes da tecnologia, o poder monopolista delas e o discurso público, disse se preocupar com a possibilidade de que o entusiasmo popular por regulamentação agressiva da expressão nas plataformas escape dos limites.

Para ela, é preocupante o fato de que os argumentos pela moderação de discursos estejam vindo hoje de grupos que antes se opunham à intervenção estatal.

"A ideia de que essas plataformas devam ser reguladas de modo bem severo quanto às formas de expressão que podem hospedar não é um argumento conservador tradicional", disse Bass. "Tudo isso tem sido uma grande reviravolta."

Um exemplo: na quinta-feira (11), o jornal The Washington Post publicou um ensaio de Charlie Kirk, presidente da Turning Point USA, uma organização que congrega jovens conservadores dos Estados Unidos, no qual ele propõe que as plataformas digitais sejam regulamentadas da mesma forma que os provedores convencionais de conteúdo.

"Combater empresas privadas por meio de ação governamental é uma ideia política e ideologicamente complicada para nós da direita", escreveu. Mas acrescentou: "Agora existem amplos motivos para acreditar que os poderes corretivos normais do mercado estão sendo bloqueados por forças anti-competitivas".

Os conservadores tradicionais dizem estar sentindo a guinada.

James Pethokoukis, analista do American Enterprise Institute, um instituto de pesquisa que defende o livre mercado, foi a uma festa em Washington há algumas semanas que incluía entre seus convidados diversos doadores de dinheiro para causas republicanas, e de repente as grandes empresas de tecnologia se tornaram o assunto.

"Eles estavam falando sobre dividir as empresas, transformá-las em companhias de infraestrutura", disse Pethokoukis. "É uma mudança chocante ante as posições de um ano atrás."

Ele ficou atônito. Para Pethokoukis, essas empresas são joias na coroa dos Estados Unidos, e baluartes importantes do país contra a ascensão de potências estrangeiras. Desde então, ele vem escrevendo contra o movimento antitruste, publicando artigos como "O Caso Antitruste Espantosamente Fraco Contra o Facebook, Google e Amazon".

A parcialidade política do setor de tecnologia é preocupação já antiga da direita, e Steve Bannon, ex-estrategista político do presidente Donald Trump, costumava falar muito sobre isso. Mas pouco se fez a respeito.

Agora, o movimento vem encontrando aliados de maior expressão. Kirk e outros que se queixaram da parcialidade anticonservadora de Facebook, Google e Twitter participaram de uma conferência de cúpula sobre mídia social, quinta-feira (11), na Casa Branca.

No evento, Trump acusou as empresas de exibir "terrível parcialidade" e disse que convocaria representantes de todas elas à Casa Branca nos próximos 30 dias.

Na sexta-feira, o presidente voltou a atacar as empresas de tecnologia, definindo-as como manipuladoras e desonestas, e acrescentando que "algo será feito".

"Nos meios em que circulo hoje", diz Pethokoukis, "se você disser que não vê parcialidade sistêmica contra os conservadores, as pessoas questionam sua sanidade".

Matt Stoller, ex-assessor de um legislador democrata no Congresso e hoje parte do Open Market Institute, organização de pesquisa antimonopólio, de tendências liberais, disse ter percebido a mesma coisa.

"O pessoal da supremacia branca adora se apoderar da linguagem do combate aos monopólios e da defesa da liberdade de expressão", disse Stoller, que escreveu um livro sobre o movimento antimonopólio.

"Mas agora existem redes verdadeiras de direita, que não são defensoras da supremacia branca, e o pessoal que as integra está genuinamente preocupado com o poder das grandes empresas de tecnologia."

Ele disse que estava tendo de reavaliar seus relacionamentos com conservadores.

"Eu antes acreditava que nossas metas eram diferentes", disse. "Mas agora temos alguns objetivos comuns."

E, por isso, coalizões cautelosas estão sendo construídas. Wu disse que está trabalhando em um movimento envolvendo secretários estaduais de Justiça para levar a luta antitruste aos tribunais do país. Os aliados mais ávidos parecem ser os republicamos, diz.

Hilton, que era consultor político no Reino Unido, criou seu programa na Fox News em 2017 prevendo o surgimento de um movimento antielitista. A eleição presidencial de 2016 era só o começo, calculou. Mas os apelos nesse sentido logo desapareceram, e as linhas partidárias não mudaram.

Hoje, ele vê um ponto positivo: a antipatia compartilhada pelas grandes empresas de tecnologia. "Passados três anos, parece que o último resquício é a questão antitruste, e, se formos realmente específicos, a hostilidade às grandes empresas de tecnologia", disse.

No programa de Hilton, Wu argumentou em favor da divisão do Facebook, com a cisão forçada de seus dois outros apps populares, WhatsApp e Instagram.

Mas ele se preocupou com a possibilidade de ser visto papeando amistosamente na Fox News, e se sentiu desconfortável quanto a divulgar sua participação no programa junto aos seus seguidores mais liberais.

"Não divulguei muito", disse. "Tirei uma selfie lá. Mas decidi não postar."

Tradução de Paulo Migliacci

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