Como o líder da Coreia do Norte obtém seus carros de luxo?

Complexa rede de suprimentos envolve países europeus e aliados de Trump

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Edward Wong Christoph Koettl
Washington | The New York Times

As limusines blindadas pretas aparecem em toda parte com Kim Jong-un, elegantes veículos ocidentais para o jovem ditador da Coreia do Norte.

Transportados da capital norte-coreana Pyongyang em jatos de carga, os sedãs carregaram Kim pelas ruas de Singapura; Hanói (Vietnã); e Vladivostok, na Rússia, durante conferências de cúpula com os presidentes Donald Trump e Vladimir Putin.

Às vezes, os carros são flanqueados nas ruas por uma falange de guarda-costas que se deslocam a pé.

Segurança norte-coreanos guardam carro de luxo usado
Segurança norte-coreanos guardam carro de luxo usado pelo ditador Kim Jong-un enquanto ele se encontra com o presidente americano, Donald Trump, na zona desmilitarizada entre as Coreias, no fim de junho - Brendan Smialowski - 30.jun.2019/AFP

São modelos de topo de linha da Mercedes-Benz, populares entre os líderes mundiais (Maybach S62 e Maybach S600 Pullman Guard), com preços unitários de entre US$ 500 mil e US$ 1,6 milhão (cerca de R$ 1,9 milhão e R$ 1,6 milhão).

E Kim os usa em desafio aberto às sanções que deveriam coibir o comércio de produtos de luxo com a Coreia do Norte.

Produtos ocidentais de primeira linha estão chegando à elite da Coreia do Norte por meio de um sistema complexo de transferências portuárias, transporte marítimo sigiloso e companhias de fachada obscuras, de acordo com uma investigação do New York Times e pesquisas do Centro para Estudos Avançados de Defesa, uma organização sem fins lucrativos de Washington.

As evasões apontam para os limites potenciais das sanções como uma ferramenta de pressão do governo Trump, que deseja que os norte-coreanos embarquem em negociações sérias para encerrar seu programa nuclear.

As autoridades americanas dizem que sanções duras são o único instrumento real de pressão sobre a Coreia do Norte.

 

Durante a fracassada conferência de cúpula de Hanói, em fevereiro, a principal demanda de Kim a Trump foi pelo fim das sanções mais severas, intensificadas desde o final de 2016.

A pedido do então presidente americano George W. Bush, a ONU impôs sanções à Coreia do Norte em 2006 para impedir a entrada de bens de luxo no país.

Mas entre 2015 e 2017, pelo menos 90 países serviram como fontes desses produtos para a Coreia do Norte, de acordo com um relatório divulgado na terça-feira pelo Centro para Estudos Avançados de Defesa.

Além disso, redes e cadeias de suprimento envolvidas percorrem os territórios de alguns integrantes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e de alguns aliados dos Estados Unidos —como China e Rússia, Japão e Coreia do Sul.

Tanto Xi Jinping da China quanto o presidente Moon Jae-in da Coreia do Sul foram transportados pelos sedãs Mercedes-Benz de Kim em visitas recentes a Pyongyang.

Xi Jinping e Kim Jong-Un acenam de carro de luxo para público
Xi Jinping e Kim Jong-Un acenam de carro de luxo para público em Pyongyang, na Coreia do Norte, durante visita do líder chinês no fim de junho - KNCA via KNS - 20.jun.2019/AFP

Para os encarregados de impor as sanções, é importante rastrear o contrabando de bens de luxo —​especialmente itens raros como carros blindados—, porque a Coreia do Norte usa técnicas semelhantes para tentar obter tecnologia de uso duplo para seu programa de armas nucleares, afirmam especialistas.

Analistas dizem que a Coreia do Norte continua a enriquecer urânio a fim de ampliar seu arsenal, estimado em 30 a 60 ogivas nucleares.

"Quando o assunto é contornar sanções, a Coreia do Norte depende de um grupo pequeno mas sofisticado de indivíduos confiáveis que transferem quaisquer produtos requeridos pelo Estado, quer sejam bens de luxo ou componentes para mísseis, ou organizam um acordo para escambo de recursos", disse Neil Watts, especialista em transporte marítimo e antigo integrante do painel de sanções da ONU contra a Coreia do Norte.

O painel da ONU apontou em seu relatório anual de 2019 o surgimento de limusines das marcas Mercedes-Benz e Rolls-Royce em Pyongyang.

Em outubro, Kim desembarcou de uma limusine Rolls-Royce Phantom para receber o secretário da Estado americano, Mike Pompeo.

A jornada realizada por um par de sedãs blindados Mercedes Maybach S600 da Europa ao leste da Ásia ilustra como uma das redes de transporte de bens de luxo funciona. O Centro para Estudos Avançados de Defesa e o New York Times traçaram seu percurso por cinco países, usando informações públicas, o que inclui registros de navegação e imagens obtidas por satélites.

Entrevistas com funcionários de governos e executivos de empresas confirmaram alguns detalhes da rede. Em fevereiro, autoridades da Coreia do Sul apreenderam um navio de propriedade russa que havia transportado os carros.

 

A viagem de alcance mundial começou no porto de Roterdã, na Holanda. Em junho de 2018, dois contêineres selados, cada um contendo um Mercedes em valor de US$ 500 mil, foram transportados de caminhão até um terminal de embarque, de acordo com documentos de rastreamento de carga.

A custódia da carga cabia à China Cosco Shipping. Não estava claro quem havia adquirido os carros inicialmente. A Daimler, controladora da Mercedes, afirma que sua subsidiária faz verificações de antecedentes quanto aos seus potenciais compradores, a fim de garantir que a companhia não viole sanções internacionais em suas vendas.

Os carros viajaram de navio por 41 dias até o porto de Dalian, no nordeste da China. Os contêineres foram desembarcados depois da chegada do navio, em 31 de julho. Ficaram no porto até o dia 26 de agosto. Em seguida foram embarcados em um navio para o porto japonês de Osaka.

De lá, outra embarcação os carregou em uma viagem de três dias a Busan, Coreia do Sul, onde eles chegaram em 30 de setembro.

Foi então que aconteceu a porção mais misteriosa da jornada. Os contêineres foram transferidos, um dia depois de sua chegada, ao navio DN5505, um cargueiro que opera sob a bandeira do Togo, um país da África Ocidental, e conduzidos ao porto de Nakhodka, no extremo leste da Rússia.

Lá, eles foram consignados à Do Young Shipping, companhia registrada nas Ilhas Marshall que é proprietária do DN5505 e de outro navio, o Katrin, um petroleiro de bandeira panamenha.

Os registros não deixam claro quem é dono da Do Young, mas ela parece estar vinculada ao empresário russo Danil Kazachuk, de acordo com documentos e entrevistas. Executivos da Han Trade e da AIP Korea, companhias de navegação sul-coreanas que operam com os dois navios, disseram que Kazachuk era o dono das embarcações.

Documentos obtidos pelo Centro para Estudos Avançados de Defesa mostram que Kazachuk esteve identificado como proprietário do Katrin por cerca de um mês em 2018.

O navio que transportou os carros, DN5505, era originalmente conhecido como Xiang Jin, mas em 27 de julho seu nome foi mudado para DN5505, e a propriedade do navio foi transferida de uma companhia sediada em Hong Kong à Do Young —poucos dias antes de os carros chegarem a Dalian.

Depois de zarpar de Busan em 1º de outubro com os carros a bordo, o navio suspendeu suas comunicações —seu sistema de identificação automática deixou de transmitir sinais. Essa é uma prática comum entre os navios que buscam contornar sanções.

O sinal ficou desligado por 18 dias.

Quando foi reativado, o navio estava em águas sul-coreanas. Transportando 2.588 toneladas de carvão, o DN5505 estava voltando a Busan, mas sua carga seria descarregada em outro porto da Coreia do Sul, Pohang.

Os registros alfandegários da Coreia do Sul demonstram que o navio embarcou o carvão em Nakhodka, de acordo com o relatório do Centro para Estudos Avançados de Defesa.

O porto em questão fica ao lado de Vladivostok, a cidade em que Kazachuk vive. Dados sobre tráfego marinho e executivos de companhias de navegação dizem que o navio reportou Nakhodka como seu destino depois de partir de Busan transportando os carros.

O relatório do centro não informa com certeza o que aconteceu com os carros. Mas pesquisadores dizem que eles podem ter sido transportados de avião da Rússia para a Coreia do Norte.

Em 7 de outubro, três jatos de carga da Air Koryo, a estatal de aviação da Coreia do Norte, chegaram a Vladivostok, de acordo com um vídeo online e dados de rastreamento de voo —no mesmo dia em que Kim usou seu Rolls Royce para receber Pompeo em Pyongyang.

É raro que aviões de carga da Coreia do Norte visitem Vladivostok. Os aparelhos são exatamente os mesmos —como os prefixos de cauda revelam— usados para transportar os veículos de Kim quando ele viaja para fora da Coreia do Norte.

"Dada a capacidade de carga elevada dos aviões e seu papel em transportar as limusines blindadas de Kim, é possível que os jatos de carga tenham carregado os Mercedes", o relatório aponta.

Quatro meses mais tarde, um Mercedes do mesmo modelo percorreu as ruas de Pyongyang até a sede do comitê central do Partido dos Trabalhadores da Coreia, de acordo com imagens em vídeo analisadas pela agência NK Pro.

Os sedãs também apareceram ao lado de Kim em uma sessão de fotos com uma delegação de artistas.

Em entrevista por telefone, Kazachuk admitiu ser responsável pelo DN5505, mas se recusou a oferecer detalhes sobre o embarque de carros ou a dizer se os havia transportado à Coreia do Norte.

"Esse é um segredo de negócios de minha empresa", disse ele. "Por que eu deveria dizer a todos onde comprei esses carros e a quem os vendi?"

Não existem provas que vinculem Kazachuk ao movimento de tecnologia ou bens militares para a Coreia do Norte, mas especialistas em sanções internacionais afirmam que a costa leste da Rússia é um ponto comum de trânsito para bens contrabandeados de e para a Coreia do Norte

Em fevereiro, as autoridades da Coreia do Sul apreenderam o DN5505 e o Katrin em ações separadas, devido a suspeitas de violação de sanções. O DN5505 estava atracado em Pohang, Coreia do Sul, e carregava mais de 3,2 mil toneladas de carvão, tendo zarpado de Nakhodka.

As autoridades disseram ao pessoal da companhia de navegação sul-coreana que fretou o navio que ele estava sendo investigado pelo transporte de carvão da Coreia do Norte. O outro navio, o Katrin, foi acusado de transportar derivados de petróleo à Coreia do Norte.

Kazachuk disse que, como proprietário de navios, ele não era responsável pelo que as embarcações transportam. Disse também que as autoridades da Coreia do Sul estavam envolvidas em uma "trapaça estatal", e que podiam ter plantado provas incriminadoras nos navios.

"A polícia sul-coreana cuspiu do alto da torre do sino sobre os direitos humanos básicos", disse.

Há outra conexão entre seus navios e suspeitas de violação das sanções. No final do ano passado, quando o DN5505 deixou sua carga de carvão em Pohang, na viagem de retorno depois do desembarque dos carros, uma empresa chamada Enermax Korea assumiu o controle do carvão.

A ONU vem investigando a Enermax, registrada na Coreia do Sul, por violação de sanções.

O relatório 2019 do painel de sanções da ONU afirma que a Enermax parece ser o recipiente final do carvão norte-coreano que deveria ter sido trasladado em abril de 2018 de um navio de bandeira norte-coreana, o Wise Honest, a um cargueiro russo, em águas territoriais da Indonésia. As autoridades indonésias detiveram o Wise Honest por volta do dia 1º de abril.

A Enermax assinou contrato para adquirir o carvão de uma empresa registrada em Hong Kong, mas disse ao painel de sanções que estava adquirindo carvão indonésio, de alguém que parecia ser um corretor local na Indonésia.

O valor estimado do contrato de carvão era de quase US$ 3 milhões (aproximadamente R$ 15 milhões).

Em maio, os Estados Unidos anunciaram que apreenderiam o Wise Honest.

Em entrevista, executivos da Enermax disseram que a transação com o corretor indonésio fracassou, e que nenhum dinheiro trocou de mãos. Também disseram acreditar que o carvão entregue à Coreia do Sul pelo DN5505 em outubro —logo depois do desembarque dos Mercedes— e em fevereiro tinha origem russa. Afirmaram que Kazachuk lhes informou que a carvão era russo.

As autoridades da Coreia do Sul apreenderam pelo menos seis navios desde o final de 2017, por suspeita de violação de sanções. Em junho, começaram a desmontar o Katrin. As autoridades afirmaram que o desmonte foi realizado a pedido de Kazachuk, que não queria continuar a pagar taxas de atracação referentes ao navio apreendido.

Tradução de Paulo Migliacci

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