Brasil deve reagir, diz ativista na Nicarágua sobre liberação de assassino de brasileira

Ícone na luta contra ditaduras no país, Vilma Nuñez, 80, critica soltura de homem que confessou o crime

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São Paulo

A nicaraguense Vilma Nuñez passou boa parte de seus 80 anos lutando contra ditaduras. Primeiro, contra os direitistas da família Somoza, que ficaram no poder de 1936 a 1979. Depois, contra o esquerdista Daniel Ortega, que governa o país hoje.

Vice-presidente da Suprema Corte do país entre 1979 e 1987, ela lutou ao lado de Ortega nos primórdios da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Sobreviveu a um massacre de estudantes em 1959, foi presa e torturada, e deixou a militância em 1998, para defender a enteada de Ortega, que denunciou ter sido estuprada por ele por anos. 

Vilma Núñez, defensora de direitos humanos da Nicarágua
Vilma Núñez, defensora de direitos humanos da Nicarágua - Carlos Herrera/El País

Em 1990, fundou o Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (CENIDH), referência no país até hoje. Para ela, Ortega é pior que Somoza. 

“É uma ditadura mais cruel porque é perversa. Não é só uma pessoa que está enfrentando uma guerra e mata, eles fazem isso com ódio, destroem as pessoas emocionalmente”, afirma. “Sou uma das pessoas traídas por Ortega.”  

Ela considera “um abuso” a decisão de libertar o homem que confessou ter matado a brasileira Raynéia Lima. 

Nesta terça (23), um ano após o crime, veio à tona um documento judicial extinguindo o processo contra o vigilante Pierson Solís. Condenado a 15 anos de prisão, ele confessou ter matado a estudante de medicina de 31 anos com um tiro de fuzil, alegando ter se sentido em perigo ao ver o veículo dela trafegando em alta velocidade. 

A oposição acredita que ele seja um paramilitar que estava do lado do governo reprimindo estudantes. Para soltá-lo, os juízes se basearam na Lei de Anistia, aprovada em junho e que levou à libertação de presos políticos. 

A estudante de medicina brasileira Raynéia Gabrielle Lima
A estudante de medicina brasileira Raynéia Gabrielle Lima, morta na Nicarágua ORG XMIT: OcgIJQES7uT6tVLu6_sW - Reprodução/Facebook

A medida foi criticada entidades internacionais. “Impunidade total”, disse José Miguel Vivanco, diretor da divisão das Américas da Human Rights Watch.  

“As graves violações aos direitos humanos não podem ser submetidas a processos de anistia. A decisão escancara a falência do Estado de Direito e da independência judicial na Nicarágua”, disse Paulo Abrão, secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ligada à OEA (Organização dos Estados Americanos).

O que pensa da decisão judicial que libertou o homem que confessou ter matado Raynéia? 

É um abuso. Nem sequer cabe a anistia neste caso. Na época do assassinato, o governo afirmou expressamente que era um caso de delinquência comum, que não era parte da crise política, pois não queria se mostrar responsável por se sentir pressionado pelo Brasil. Agora entram em contradição e usam a lei como uma autoanistia. Achamos que com essa liberação começou o processo de autoanistia. 

Pode-se ter aberto um precedente para anistiar outros crimes de parte do governo? 

Foi isso que motivou o regime a aprovar a Lei da Anistia. Foi uma decisão unilateral do governo. Nenhum setor de direitos humanos apoiava a lei, porque sabíamos que todos os jovens presos eram inocentes e que o objetivo de Ortega era se autoanistiar, ou seja, usá-la para liberar responsáveis pelos crimes atrozes [cometidos contra a oposição]. 

A morte de Raynéia não foi um crime comum? 

De nenhuma maneira. No momento em que mataram a jovem, havia uma forte repressão contra os estudantes. Viram uma estudante sozinha, de carro, à noite e atiraram. Assim tratavam as pessoas, eliminando-as.

Está comprovado que Solís era um paramilitar? 

Há evidências de que era. Ele tinha preparação militar e portava ilegalmente uma arma de guerra muito usada por paramilitares que apoiavam o governo. Por que andava com essa arma de guerra? 

Há rumores de que ele não esteve preso. Vocês comprovaram que ele tenha estado na prisão? 

Não conseguimos. O governo não deixa que as entidades de direitos humanos tenham acesso às penitenciárias e não há forma de saber isso de outra maneira. O que sabemos é que nenhum dos presos políticos que foram soltos o viram na prisão --e há apenas uma prisão para réus já condenados em Manágua, ele teria que estar lá. 

É possível reverter essa decisão judicial? 

Não sei o que se pode fazer a esta altura, mas vamos dar seguimento ao caso do ponto de vista jurídico. 

Esperamos que o Brasil tome posição, esperamos uma reação certa e reta do Brasil. Na época do crime, a reação foi discreta: fomos pedir informação na embaixada do Brasil e não nos receberam. 

A sede do CENIDH foi fechada pela polícia. Como vocês estão atuando?

Sim, em dezembro de 2018, 60 policiais armados entraram em nossas instalações durante a noite e nunca mais saíram. Não sabemos nem se roubaram tudo, porque nunca mais nos deixaram entrar. Estamos trabalhando quase na clandestinidade. Não podemos nem passar naquela rua. Aqui capturam todo mundo. 

Como a senhora encontra forças para continuar lutando depois de tantos anos e tantas ameaças?

Amanhã deve ter uma marcha e vou participar. Não quero morrer até que esse homem saia do poder e a Nicarágua recupere a liberdade.

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