Descrição de chapéu The New York Times

Notre-Dame chegou muito mais perto de desmoronar do que se pensava

Investigação aponta demora de funcionários para notar que igreja estava pegando fogo

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Parte interna da catedral de Notre-Dame, durante o trabalho de reconstrução Stephane de Sakutin - 17.jul.2019/Reuters

Paris | The New York Times

O funcionário que monitorava o painel de alarme de fumaça na Catedral de Notre-Dame em Paris tinha apenas três dias no emprego quando a luz vermelha de alerta piscou no entardecer de 15 de abril: "Feu". Fogo.

Eram 18h18 de uma segunda-feira, na semana anterior à Páscoa. O reverendo Jean-Pierre Caveau celebrava a missa diante de centenas de fiéis e visitantes, e o funcionário se comunicou por rádio com um guarda da igreja que estava a poucos metros do altar. Verificar se há fogo, o guarda foi informado. Ele fez isso e não encontrou nada.

Demorou quase 30 minutos para que percebessem o erro: o guarda tinha ido para o prédio errado. O fogo estava no sótão da catedral, a famosa treliça de madeiras antigas conhecida como "a floresta".

A falta de comunicação, revelada em entrevistas com autoridades da igreja e com os gerentes da empresa de segurança contra incêndios, Elytis, desencadeou uma dura rodada de acusações sobre quem foi responsável por permitir que o fogo seguisse incontido por tanto tempo. Quem é o culpado e como o incêndio começou ainda não foram determinados, e ocupam o centro de uma investigação pelas autoridades francesas que continuará durante meses.

 

Mas o dano está feito. O que aconteceu durante mais de quatro horas naquela noite mudou Paris. A catedral —uma estrutura medieval que conquistou os corações de fiéis e infiéis durante 850 anosfoi devastada.

Hoje, três aberturas irregulares marcam o teto abobadado de Notre-Dame, a pedra da estrutura é precária e o telhado desapareceu. Cerca de 150 trabalhadores estão empenhados em recuperar as pedras, reforçar o prédio e protegê-lo dos elementos com duas lonas gigantes.

Parte do que deu errado naquela noite foi relatado na mídia francesa, incluindo os jornais Le Monde e Le Canard Enchaîné. Agora, o New York Times realizou dezenas de entrevistas e reviu centenas de documentos para reconstruir os erros —e a batalha que salvou Notre-Dame nas primeiras quatro horas críticas após o início do incêndio.

O que ficou claro é que a catedral chegou perto do colapso.

A primeira hora foi definida por esse erro crítico inicial: a falha em identificar a localização do incêndio e o atraso que se seguiu.

A segunda hora foi dominada por uma sensação de desamparo. Enquanto as pessoas corriam para o prédio, ondas de choque e luto por um dos edifícios mais adorados e reconhecidos do mundo, amplificados nas redes sociais, percorriam em tempo real o mundo inteiro.

Que Notre-Dame ainda esteja de pé se deve apenas aos enormes riscos assumidos pelos bombeiros na terceira e quarta horas.

Em desvantagem por causa do início tardio, os bombeiros correram os 300 degraus até o sótão em chamas e depois foram forçados a recuar. Finalmente, um pequeno grupo de bombeiros foi enviado diretamente para as chamas, num último esforço desesperado para salvar a catedral.

"Havia a sensação de que estava em risco algo maior que a vida", disse Ariel Weil, subprefeito do 4º Distrito da cidade, onde fica a catedral, "e que Notre-Dame poderia desaparecer."

Tempo precioso perdido

Paris sofreu muito nos últimos anos, de ataques terroristas às recentes manifestações violentas dos Coletes Amarelos. Mas para muitos parisienses a visão de Notre-Dame em chamas foi insuportável.

"Para os parisienses, Notre-Dame é Notre-Dame", disse seu reitor, monsenhor Patrick Chauvet, que assistiu aos prantos naquela noite enquanto os bombeiros lutavam para domar o incêndio. "Eles não pensaram nem por um segundo que isso poderia acontecer."

O sistema de alarme de incêndio de Notre-Dame levou seis anos para ser montado por dezenas de especialistas, e no final envolvia milhares de páginas de diagramas, mapas, planilhas e contratos, segundo documentos encontrados em uma biblioteca de Paris pelo Times.

O resultado foi um sistema tão misterioso que, quando precisou fazer a única coisa que importava —dar o alerta de "fogo!" e dizer onde— produziu uma mensagem quase indecifrável.

Isso tornou uma calamidade quase inevitável, disseram especialistas em incêndios consultados pelo Times.

"A única coisa que me surpreendeu é que esse desastre não tenha acontecido antes", disse Albert Simeoni, especialista nascido e treinado na França, mas que hoje é chefe de engenharia de proteção contra incêndios no Worcester Polytechnic Institute, em Massachusetts (EUA).

O pesado plano de reação, por exemplo, subestimava a velocidade com que um incêndio se espalharia pelo sótão de Notre-Dame, onde não havia borrifadores de água ou paredes corta-fogo para preservar a arquitetura.

As falhas do plano podem ter sido agravadas pela inexperiência do funcionário da segurança, que trabalhava em Notre-Dame havia apenas três dias quando o incêndio começou.

Posicionado desde as 7h dentro das paredes verde-pálidas da minúscula sala do presbitério, ele deveria ser rendido depois de um turno de oito horas. Mas seu substituto estava de licença, então ele estava na segunda etapa de um turno duplo.

O painel de controle monitorado por ele estava conectado a um elaborado sistema composto por tubos com pequenos orifícios que percorriam todo o complexo da catedral. Em uma extremidade de cada tubo havia o que é chamado de detector "aspirante" —um dispositivo altamente sensível que suga o ar para detectar qualquer fumaça.

A mensagem que rolou pelo monitor foi muito mais complexa do que a simples palavra "Fogo". Primeiro, deu uma descrição abreviada de uma zona —o complexo da catedral foi dividido em quatro—  que dizia "Ático Sacristia Nave".

Isso foi seguido por uma série de letras e números —ZDA-110-3-15-1— , código de um detector de fumaça específico entre mais de 160 detectores e alarmes manuais no complexo.

Finalmente veio a parte importante: "estrutura de aspiração" —indicando um detector aspirante no sótão da catedral, que também era conhecido como a estrutura.

Ainda não está claro o quanto desse alerta todo o funcionário entendeu ou transmitiu ao guarda —e se a parte crítica foi transmitida, embora a Elytis insista que sim.

No momento em que foi decifrado, as chamas já corriam soltas, altas demais para ser controladas por um extintor de incêndio.

Finalmente, o guarda passou um rádio para o funcionário da segurança contra incêndios chamar o corpo de bombeiros. Eram 18h48, 30 minutos depois do primeiro sinal vermelho acender a palavra "Fogo".

Toda a delicada tecnologia no centro do sistema foi desfeita por uma cascata de equívocos e suposições errôneas incorporadas ao planejamento, afirmou Glenn Corbett, professor-associado de ciência do fogo na Faculdade de Justiça Criminal John Jay, em Nova York.

"Temos um sistema que é conhecido por sua capacidade de detectar quantidades muito pequenas de fumaça", disse Corbett. "No entanto, o resultado final é uma reação humana desajeitada. Você pode gastar muito para detectar um incêndio, mas tudo vai pelo ralo quando você não se move."

Um espetáculo global

Se levaram mais de meia hora para chamar os bombeiros, apenas alguns minutos depois que a fumaça apareceu as imagens começaram a circular pelo mundo, nas redes sociais.

"Acho que Notre-Dame está pegando fogo", postou alguém em um vídeo no Twitter às 18h52. Em poucos minutos, a fumaça, soprada para oeste pelo vento, era tão espessa que começou a obscurecer as torres.

O reitor Chauvet estava conversando a algumas centenas de metros da catedral com lojistas, quando de repente um deles apontou para cima e exclamou: "Olhe, está saindo fumaça!"

Houve uma sensação de naufrágio. "Eu disse para mim mesmo: 'A floresta pegou fogo'", lembrou Chauvet, referindo-se ao sótão da catedral.

Ele pegou o celular e avisou sua equipe. Eles disseram que o corpo de bombeiros havia sido chamado, mas ainda não tinha chegado.

"Eu era incapaz de fazer qualquer coisa", disse Chauvet. "Não consegui dizer nada. Assisti a catedral queimar."

Weil, o subprefeito do 4º Distrito, acabava de sair de uma longa reunião ali perto, na Prefeitura, o Hôtel de Ville, quando viu a fumaça e correu em direção a Notre-Dame.

Ele ligou para a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, e ela correu para encontrá-lo. Quando chegaram à praça, lágrimas escorriam pelo rosto de Chauvet. Cinzas e flocos em brasa flutuavam no ar.

A visão de um bombeiro

No momento em que a cabo Myriam Chudzinski chegou, poucos minutos antes das 19h, Notre-Dame estava cercada por centenas de espectadores horrorizados. O fogo já atravessava o telhado, brilhante.

Chudzinski, 27, quis ser bombeira desde que era menina. Agora ela olhava sem palavras para um tipo de incêndio que nunca havia visto.

Seu caminhão parou na rue du Cloître-Notre-Dame, uma via estreita que percorre um lado da catedral. O prédio era tão gigantesco que ela não conseguia ver para onde o fogo estava se espalhando.

A equipe de Chudzinski foi uma das primeiras a chegar e se dirigiu ao sótão. Eles imediatamente ligaram as mangueiras à tubulação seca da catedral —tubos verticais vazios que permitiriam bombear água até as chamas.

Carregando 25 quilos de equipamento e um tubo de respiração em seu ombro, ela subiu a escada escura no transepto no lado norte da catedral.

Ela conhecia bem a estrutura, pois havia treinado em Notre-Dame no outono. Quando subiu, Chudzinski lembrou que o sótão não tinha paredes corta-fogo para evitar a propagação de incêndios —elas tinham sido recusadas para preservar a teia de vigas de madeira históricas.

Com chamas tão intensas, ela percebeu que o sótão seria uma caixa de fósforos.

Além do treino, Chudzinski tinha visitado a catedral uma vez alguns anos atrás, e ficou maravilhada com sua vastidão.

"Era tão pacífica, tão tranquila", disse ela. "Mas naquela noite mais parecia o inferno."

Uma vez no topo, Chudzinski e sua equipe pararam em uma cornija do lado de fora do sótão enquanto ela assumia a liderança encharcando as chamas, a cerca de 5 metros de distância.

Seu colega que segurava a mangueira atrás dela viu que as chamas estavam sendo empurradas por um vento forte em direção à torre norte da catedral. O fogo começava a cercá-los, ameaçando prendê-los do lado de fora, no meio do inferno. Eles recuaram para dentro, em direção ao sótão.

Não havia vento lá. Mas o ar estava tão quente, tão pouco respirável que, pela primeira vez naquela noite, Chudzinski ligou o aparelho de respiração. Sentia uma sede terrível.

No sótão, as chamas avançavam como um muro incontível. Elas já cobriam inúmeras vigas e mordiscavam o piso. Pedaços de madeira se desprendiam e caiam das vigas, um a um.

Por volta das 19h50, com quase uma hora de luta, uma explosão ensurdecedora a envolveu, como "um trator gigante derrubando dezenas de pedras numa lixeira".

Toque e vá

O presidente Emmanuel Macron chegou, juntamente com o primeiro-ministro Édouard Phillippe e outros altos funcionários, para avaliar os danos. Era perto das 20h30.

Um grupo de cerca de 20 autoridades, que incluíam Hidalgo, Weil e Chauvet, se reuniu no quartel-general da polícia para ser informado pelo general Jean-Claude Gallet, chefe da brigada de bombeiros de Paris.

Vestido com equipamento de combate a incêndios, encharcado de água, Gallet, 54, tinha servido no Afeganistão e se especializou em gestão de crises. Ele entrou na sala de conferências e deu a má notícia.

O sótão não poderia ser salvo. Ele decidira deixar passar. Mandaria suas brigadas aplicarem toda a sua energia para salvar as torres, concentrando-se na norte, já em chamas.

"Ele entrou e nos disse: 'Em 20 minutos, saberei se perdemos'", contou Weil. "O ar estava denso. Mas nós sabíamos o que ele queria dizer: que Notre-Dame poderia desmoronar."

"Nesse ponto", disse Weil, "ficou claro que alguns bombeiros iriam para a catedral sem saber se voltariam."
Chauvet chorou. O primeiro-ministro torcia os polegares nervosamente.

Macron permaneceu em silêncio, mas pareceu dar aprovação tácita à decisão de Gallet.

Na praça, um posto de comando temporário havia sido instalado. Lá, o vice de Gallet, general Jean-Marie Gontier, gerenciava os bombeiros nas linhas de frente.

Ele os reuniu ao seu redor para preparar a segunda fase da batalha. Um tapete escorregadio de cinzas cobria de preto e cinza as pedras do piso.

 

A situação parecia sombria. Em quadros brancos havia esboços do avanço do fogo. Imagens de drones da polícia mostravam o telhado da catedral como uma cruz de fogo iluminando o céu noturno. No centro havia um buraco onde o pináculo permaneceu por mais de 160 anos.

Fumaça grossa rolava da estrutura de madeira da torre norte. Brasas do tamanho de um polegar voavam como vespas cintilantes e perfuravam algumas mangueiras. Um dos tubos secos necessários para levar água ao topo da catedral estava vazando, diminuindo a pressão da água.

Agora, todo o tempo perdido porque os bombeiros tinham sido chamados tarde se tornou crítico. Gontier comparou a uma corrida a pé.

"É como começar uma de 400 metros, várias dezenas de metros atrás", disse ele.

Gabriel Plus, porta-voz do corpo de bombeiros de Paris, disse: "Tivemos que tomar decisões rapidamente".

No posto de comando, o sargento-mor Rémi Lemaire, 39, sugeriu que poderiam subir as escadas da torre sul, onde ele esteve no início do combate.

Poderiam carregar duas mangueiras adicionais, disse, e conectá-las diretamente a um caminhão dos bombeiros. Isso daria à equipe mais pressão de água do que na tubulação que vazava. E então, de lá, os bombeiros poderiam entrar na torre norte em chamas.

Foi uma estratégia de alto risco. Mas Gontier concordou.

Sem saída

Lemaire já tinha visto os perigos que a torre norte apresentava mais cedo naquela noite. No tempo que levaram para decidir o novo plano, as coisas só pioraram.

"No começo relutamos em ir porque não tínhamos certeza de que teríamos uma rota de fuga", disse ele.

Um grupo de bombeiros de um subúrbio vizinho se recusou a ir, mas outra equipe disse que iria.

Eles arrombaram um portão e, ao entrar na torre norte, encontraram partes de uma parede e o piso em chamas. Subiram um lance de escada até a altura dos sinos. De lá, poderiam apagar as chamas.

Um bombeiro quase caiu através dos degraus quebradiços —mas por volta das 21h45 eles tinham as chamas sob controle.

Gontier subiu no balcão de Notre-Dame para inspecionar a situação.

"Ela está salva", declarou ao descer.

Às 23h, Gallet disse às autoridades que estavam confiantes de que o fogo nas torres seria controlado. Por volta das 23h30, o presidente Macron se dirigiu ao país ao vivo pela televisão, em frente à catedral.

"O pior foi evitado, mesmo que a batalha ainda não esteja terminada", disse. Então ele fez uma promessa: "Vamos reconstruir esta catedral juntos".

Acusações

Nos últimos três meses, investigadores realizaram cerca de cem entrevistas e reviraram os escombros, à procura de pistas sobre o início do incêndio.

Eles se concentraram na possibilidade de um curto-circuito nos sinos eletrificados da torre, ou nos elevadores que haviam sido montados nos andaimes para ajudar os trabalhadores a realizar reformas.

Eles também estão considerando pontas de cigarro, que foram encontradas nos andaimes, aparentemente deixadas pelos trabalhadores.

"Não descartamos nenhum cenário, apenas sabemos que não foi criminoso", disse uma autoridade da polícia de Paris, falando sob a condição do anonimato porque a investigação ainda está em andamento.

A falta de comunicação que permitiu que o fogo se espalhasse por tanto tempo é agora a fonte de uma amarga disputa sobre quem é o responsável.

Autoridades da igreja dizem que o funcionário da Elytis, empresa de segurança contra incêndios, não mencionou a estrutura do telhado da catedral.

"Vários deles tinham rádios walkie-talkie e todos ouviram 'Ático Nave Sacristia'", disse André Finot, porta-voz de Notre-Dame. "Isso é tudo."

Chauvet, reitor de Notre-Dame, recusou-se a permitir que os funcionários dessem entrevistas de forma independente, citando a investigação.

"Alguns poderiam perder o emprego", disse ele. "Pedi que eles não falassem."

Arnaud Demaret, diretor-executivo da Elytis, disse que seu empregado ainda está em choque. A empresa recebeu duas ameaças de morte por telefone nos dias após o incêndio, segundo ele.

Mas o diretor insistiu que seu funcionário comunicou a localização do incêndio corretamente.

"Há apenas uma estrutura de madeira", disse Demaret em uma entrevista. "E fica no sótão."

"Se o empregado da igreja tivesse subido ao sótão logo após o meu empregado tê-lo alertado", disse ele, "teria visto a fumaça."

Lição de fragilidade

Depois que o fogo foi controlado, Lemaire e seus colegas ficaram no telhado para apagar as chamas e proteger a torre sul, onde três pequenos incêndios haviam começado.

Chudzinski passou o resto da noite ajudando a abrir espaço para outros caminhões de bombeiros e protegendo a área. Então ela voltou para seu quartel. A cidade estava tranquila.

Ela se lembrou de seu retiro e da filmagem do drone mostrando a catedral de cima como uma cruz flamejante. Só então, quando não estava mais absorvida pelo combate ao fogo, compreendeu totalmente o âmbito da reação.

"Eu não sabia quão grande tinha sido o trabalho de equipe", afirmou ela.

Milagrosamente, ninguém morreu.

Três dias depois, ela e Lemaire estavam entre as centenas de bombeiros e policiais homenageados por Macron no Palácio do Eliseu.

Inúmeros parisienses pararam nos quartéis de bombeiros da cidade para doar alimentos e pequenos presentes e expressar seus agradecimentos. Vieram elogios do mundo inteiro.

"Essas pessoas foram heróis", disse Weil.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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