'Poderia ter sido qualquer um de nós': desprezo por Trump é comum entre embaixadores

Críticas ao presidente feitas em documento secreto levaram à renúncia de diplomata britânico

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David E. Sanger
Washington | The New York Times

​Pergunte aos membros do corpo diplomático de Washington sobre os telegramas que sir Kim Darroch, o embaixador britânico que renunciou na quarta-feira (10), enviou a Londres, descrevendo a disfunção e o caos no governo Trump, e a resposta será uniforme: escrevemos a mesma coisa.

"Sim, sim, todo mundo faz isso", disse na quarta-feira de manhã Gérard Araud, ex-embaixador da França que se aposentou nesta primavera, sobre suas próprias comunicações de Washington. "Mas felizmente eu sabia que nada permaneceria em segredo, então eu as enviei da maneira mais confidencial."

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante evento na Casa Branca - Ting Shen - 11.jul.2019/Xinhua

O mesmo fez Darroch, que, sozinho e com Araud, tentou navegar no campo minado de servir como principal representante de antigos aliados dos Estados Unidos para um presidente que não dá muito valor às alianças.

Até que os telegramas confidenciais de Darroch apareceram no jornal britânico Daily Mail no fim de semana passado, nenhum dos principais embaixadores em Washington havia sido chamado pelo presidente Donald Trump de "maluco" ou de "sujeito muito idiota" —descrição que os amigos do emissário dizem que dificilmente se aplica a um dos diplomatas mais sofisticados do Reino Unido e um ex-assessor de segurança nacional.

Mas, como um embaixador que ainda está em serviço, e portanto falou sob a condição do anonimato, disse na quarta-feira, "poderia ser qualquer um de nós".

Com poucas exceções —incluindo os embaixadores de Israel e dos Emirados Árabes Unidos, que apoiaram todas as medidas de Trump—, os diplomatas estrangeiros em Washington atualmente descrevem a vida numa espécie de buraco negro.

As decisões que afetam diretamente as relações comerciais ou militares de suas nações são apresentadas sem aviso prévio. Seus contatos dentro do Departamento de Estado, do Tesouro e do Congresso dizem a eles que têm pouca ideia de que decisões Trump poderá tomar, ou o que ele poderá reverter.

E a administração Trump quase se diverte em manter os diplomatas estrangeiros no escuro. Enquanto Darroch, seguindo a tradição de seus antecessores, ofereceu recepções no grande salão de baile da Embaixada Britânica e coquetéis de fim de semana sob tendas no gramado com vista para a Embassy Row, poucos funcionários do governo compareceram.

Houve aparições ocasionais de Ivanka Trump e Jared Kushner, a filha mais velha e o genro do presidente, que também servem como assessores seniores do presidente e moram com seus filhos a poucos quarteirões da embaixada.

Alguns outros funcionários, como Kellyanne Conway, advogada do presidente, compareceram às famosas festas de Ano Novo de Darroch, realizadas em meio à impressionante coleção de arte da embaixada.

Mas essas ocasiões foram raras. Os secretários de Estado de Trump, Rex Tillerson e Mike Pompeo, não pareciam alimentar o "relacionamento especial". Nem o vice-presidente Mike Pence, que mora ao lado da embaixada britânica.

Embora Darroch muitas vezes tentasse chegar à Casa Branca e ao Conselho de Segurança Nacional, como a maioria dos embaixadores dos países da Otan, ele nunca sentiu que havia entrado no círculo interno.

Em dezembro, quando Trump anunciou via Twitter que os Estados Unidos estavam retirando forças da Síria —para onde tanto os britânicos quanto os franceses enviaram tropas, algumas delas dependentes das forças dos EUA para transporte e inteligência—, Darroch não foi avisado.

Ele telefonou para pessoas na capital, contatando membros importantes do Congresso e repórteres de segurança nacional para obter informações. Para ser justo, a própria equipe de segurança nacional de Trump também foi pega de surpresa, e o secretário da Defesa, Jim Mattis, renunciou em protesto. (Trump mais tarde insistiu que Mattis foi demitido.)

A decisão sobre a Síria foi silenciosamente revertida, em parte. Mas foi mais um exemplo do caos que Darroch descreveu a seu sucessor como assessor de segurança nacional, Mark Sedwill, em um memorando de 2017 que vazou no sábado (6), levando à declaração de Trump de que o embaixador do antigo aliado americano era, na verdade, "persona non grata".

Da mesma forma, a Casa Branca mal notificou os aliados sobre a decisão de Trump de se retirar do acordo nuclear com o Irã no ano passado, apesar de o Reino Unido, a França e a Alemanha terem ajudado a negociá-lo.

Como observou um embaixador da Otan, demorou semanas para que o governo os reunisse e descrevesse sua nova estratégia para o Irã, composta em grande parte por uma série de 12 exigências que Pompeo também anunciou em um discurso.

"Para mim, como estrangeiro, foi fascinante", disse Araud, que hoje considera seu mandato de embaixador francês uma grande experiência de ciência política.

"É o que acontece quando um líder populista assume o comando de uma democracia liberal. Essas pessoas não reconhecem nem aceitam a ideia de que um embaixador ou um burocrata possa ter alguma utilidade. Eles só querem tratar com outros líderes."

Araud lembrou um momento em 2017 quando o ministro das Relações Exteriores da França planejava uma viagem a Washington.

O embaixador deu ao Departamento de Estado dois meses de antecedência para tentar se encaixar no cronograma de Tillerson. Eles só responderam um dia antes do evento, lembrou Araud, para dizer que a reunião duraria apenas 20 minutos.

"Então o ministro não veio", disse.

Darroch teve um pouco mais de êxito. Desde a época em que foi conselheiro de segurança nacional, ele teve contatos profundos nas agências de inteligência dos Estados Unidos e entre a classe permanente de especialistas em segurança nacional. Mas mesmo nessas conversas as autoridades muitas vezes expressaram perplexidade sobre como eram tomadas as decisões e geradas as políticas no governo Trump.

Tradicionalmente, o embaixador britânico seria chamado por altos funcionários americanos para consultas sobre as principais decisões em consideração no Oriente Médio, ou no trato com a Rússia, onde o GCHQ britânico —o Quartel-General de Comunicações do Governo, equivalente à Agência Nacional de Segurança— frequentemente assume a liderança na obtenção de inteligência.

Mas não na era Trump.

Haverá um novo embaixador britânico, provavelmente nomeado depois que o Parlamento escolher um primeiro-ministro para substituir Theresa May, que está de saída, e definir um novo governo. Mas sob as condições atuais não está claro se o acesso desse diplomata será muito melhor.

Um comentário do Departamento de Estado sobre a partida de Darroch na quarta-feira repetiu de forma branda seu compromisso com a "relação especial" entre os Estados Unidos e o Reino Unido.

Os dois países "compartilham um vínculo maior que qualquer indivíduo", disse o comunicado, "e esperamos continuar com essa parceria".

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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