Descrição de chapéu The New York Times

À medida que geração de 'Trainspotting' envelhece na Escócia, mortes se acumulam

Overdoses por opiáceos são mais comuns no país do que nos Estados Unidos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Glasgow | The New York Times

Tony Nugent passou quase sete anos sóbrio, e então teve uma recaída.

Descobriu que a heroína, cruel com os jovens, é ainda mais impiedosa quando você envelhece.

Nugent usava a droga intermitentemente desde os 19 anos, mas teve uma overdose na primeira vez em que voltou a injetá-la depois de anos de sobriedade. Passou por mais três overdoses desde o ano passado.

“Quase morri quatro vezes”, disse Nugent, que completa 43 anos este mês. “A recuperação fica mais difícil à medida que envelheço.”

Mas ele ainda assim se considera afortunado, especialmente porque vive em uma cidade que vem sendo definida como “a capital mundial das mortes por drogas”.

James Muir, à esquerda, e Tony Nugent usam heroína em uma escadaria popular para viciados em Glasgow - Mary Turner/The New York Times

No ano passado, houve 1.187 mortes relacionadas a drogas na Escócia, um recorde e uma alta espantosa de 27% em relação ao ano anterior. Overdoses são mais comuns na Escócia do que até mesmo nos Estados Unidos, de acordo com alguns indicadores.

Os usuários de opiáceos mais velhos, que usam a droga há mais tempo, respondem por boa parte do problema. E a expectativa é de que as coisas só piorem.

“Estamos vendo doenças que seriam associadas à velhice em diversos homens de meia-idade que têm históricos longos de uso de drogas”, disse Carole Hunter, a farmacêutica chefe da Glasgow Addiction Services. “O que um corpo tolera aos 18 anos é impossível de tolerar aos 38 ou 48.”

As mortes causadas por drogas não são novidade na Escócia. Mais de duas décadas atrás, a vida difícil dos viciados de Edimburgo foi o tema do romance “Trainspotting”, transformado em filme.

O que há de novo agora é que muita gente está morrendo.

“Lembro-me de que havia indignação quando as manchetes falavam em uma morte causada por drogas a cada dia”, disse Andrew McAuley, pesquisador sênior sobre abuso de substâncias na Universidade Caledonian de Glasgow, em referência a uma investigação nacional sobre mortes causadas por drogas publicada em 2003.

“Agora esse parece um passado glorioso. O número de mortes é quatro vezes maior hoje."

Existem quase 60 mil usuários de drogas na Escócia que recorrem a opiáceos e benzodiazepina rotineiramente. Muitos também sofrem de problemas de saúde física e mental que os colocam em risco maior de morrer de overdose.

Nugent é uma dessas pessoas. Ele já foi tratado por trombose venosa profunda, hepatite C e abscessos na pele. E diz que recentemente vem urinando sangue.

“A Escócia começa a se parecer mais com os Estados Unidos do que com muitos dos países que vemos com políticas mais progressistas quanto às drogas”, disse Corey Davis, advogado do Programa Nacional de Leis de Saúde.

“Ela apresenta abuso de drogas e álcool mais alto, falta crônica de investimento em saúde pública e menos interesse em adotar intervenções como espaços supervisionados para consumo."

Os Estados Unidos já estão na terceira década de sua crise de opiáceos, e com o envelhecimento da população de usuários de drogas os especialistas fariam bem em estudar a resposta da Escócia.

Os Estados Unidos têm número muito maior de usuários de drogas em termos absolutos, e muitos deles recorrem a drogas mais letais, como o fentanil; os americanos dependentes também têm menos acesso a tratamentos do que os usuários escoceses.

“Existem lições a aprender internacionalmente, porque muitos países enfrentam esse problema”, disse Jeffrey Samet, professor da Universidade de Boston especializado em distúrbios causados pelo abuso de substâncias.

A Escócia nem sempre foi o “doente da Europa”.

Até por volta de 1950, a expectativa de vida do país era similar à da maioria da Europa Ocidental, ou superior. Mas depois da Segunda Guerra Mundial, as coisas na Escócia melhoraram mais devagar do que em qualquer outro país da Europa Ocidental.

Os motivos por trás da crise de drogas na Escócia são variados: políticas econômicas que deixaram áreas altamente empobrecidas. Serviços de tratamento negligenciados. As drogas se tornaram mais letais.

“É um quebra-cabeça complexo”, disse McAuley, o pesquisador de Glasgow. “É nossa história, é a maneira pela qual consumimos drogas, é a falta crônica de verbas, e os serviços de tratamento insuficientes que temos. Se adicionarmos a isso as políticas de austeridade e os cortes de benefícios sociais dos últimos anos, temos a tempestade perfeita para que algo assim aconteça."

Muitos dos problemas da Escócia surgiram com mudanças de política social e econômica adotadas no final da década de 1970, de acordo com David Walsh, pesquisador no Centro de Pesquisa de População de Glasgow e estudioso da alta mortalidade na Escócia.

O governo conservador da época em Londres considerava que cidades industriais como Glasgow estavam em “decadência”, e pressionava por rápida reestruturação econômica.

Os líderes escoceses tomaram decisões políticas contenciosas, igualmente. Especialmente em Glasgow, disse Walsh, as autoridades priorizaram o desenvolvimento de imóveis comerciais e a demolição de cortiços, transferindo comunidades inteiras para conjuntos de habitação pública em locais isolados e com péssima manutenção.

“Há uma relação muito clara entre fatores socioeconômicos e a saúde”, disse Walsh. “Há provas de que as pessoas se voltam ao álcool e às drogas para lidar com circunstâncias difíceis."

Enquanto mudanças profundas aconteciam na Escócia, heroína fluía para a Europa. Uma rota de suprimento ligando o Afeganistão ao Irã surgiu na década de 1980, tornando mais drogas disponíveis –a preço acessível– do que no passado. Na Escócia, isso criou a chamada “geração Trainspotting”.

“Antes de 1980, a unidade antidrogas da polícia dizia que havia cerca de 50 pessoas em Edimburgo que usavam heroína, e elas eram todas conhecidas”, disse Roy Robertson, professor de medicina da Universidade de Edimburgo e especialista em toxicodependência.

“Então, por volta de 1980, veio essa onda de drogas e a disponibilidade estimulou uma epidemia."

Por anos, a Escócia conseguiu realizar avanços na redução das mortes causadas por drogas.

Locais para fornecimento de seringas gratuitas foram criados na década de 1980, e o naloxone, um medicamento salvador em caso de overdose, está em uso generalizado desde 2011.

Terapias de substituição de opiáceos, como a metadona –fortemente regulamentada nos Estados Unidos–, são gratuitas e estão disponíveis na maioria das farmácias por meio do sistema nacional de saúde.

Mas em 2016 o governo escocês cortou as verbas dos serviços de prevenção para álcool e drogas em mais de 20%, de 69 milhões de libras (US$ 84 milhões) ao ano para 54 milhões de libras. As verbas foram restauradas mais tarde, e o governo escocês prometeu 20 milhões de libras em dinheiro adicional a partir deste ano.

“O que você esperaria que acontecesse em um país com problema de vício em opiáceos se os tratamentos fossem progressivamente removidos? O número de óbitos cresceria constantemente”, disse John Strang, professor do King’s College de Londres e estudioso de tratamentos para dependência química há mais de 30 anos.

Cerca de 40% dos usuários da Escócia estão em tratamento no momento, de acordo com a médica Lesley Graham, do Serviço Nacional de Saúde da Escócia. Na Inglaterra, a proporção é mais próxima dos 60%. O desafio para a Escócia é colocar mais pessoas em tratamento –e manter esse tratamento.

Quando Daniel Hamilton chegou à Edinburgh Access Practice, na segunda-feira, ele não achava que conseguiria naquele mesmo dia uma receita para metadona, o substituto de opiáceo usado para conter o desejo de heroína.

Em sua cidade, Perth, obter uma receita pode demorar meses, ele disse. (Uma revisão de casos do Serviço Nacional de Saúde mostra que a espera média por tratamento na região é de oito semanas.)

“Você pode usar um lote ruim de heroína e morrer, enquanto espera”, ele disse.

A clínica Edinburgh Access Practice está tentando tratar as pessoas mais rápido e quer começar a lidar com as questões por trás do uso de drogas. Sua equipe inclui profissionais de saúde mental, assistentes sociais e especialistas em moradia e emprego.

Mas operações como essa são raras. Os especialistas dizem que a Escócia precisa ampliar e melhorar o acesso aos serviços existentes, e depois introduzir abordagens como centros de tratamento para dependentes de heroína ou instalações para consumo supervisionado da droga.

“Conseguimos manter muita gente viva na faixa etária de usuários mais velhos com os nossos serviços de tratamento atuais, mas eles chegam a um ponto em que esse atendimento não basta”, disse McAuley. “Precisam de cuidados respiratórios, precisam de cuidados de saúde mental, precisam de ajuda com moradia, emprego, previdência e muitas outras coisas."

Substâncias controladas como a heroína, porém, recaem na jurisdição do governo britânico, e legisladores conservadores resistem a propostas para políticas mais progressistas com relação às drogas.

“O governo do Reino Unido deixou claro que não existe estrutura legal para a provisão de espaços para consumo de drogas, e plano algum para introduzi-los”, afirmou a Secretaria do Interior britânica em comunicado.

Joe Fitz Patrick, ministro da Saúde da Escócia, lamenta essa posição.

“Sei que o instinto do governo britânico é que eles não desejam de maneira alguma ser vistos como aceitando o uso ilegal de drogas”, ele disse. “Mas pessoas estão morrendo. Precisamos fazer coisas que inicialmente parecerão difíceis."​

Tradução de Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.