É estranho ver 300 ONGs na Amazônia e nenhuma no Nordeste, diz embaixador na França

Segundo o Ipea, órgão do governo brasileiro, no entanto, região tem mais de 200 mil organizações do tipo

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Paris

​O embaixador do Brasil na França, Luís Fernando Serra, diz que a escalada retórica entre Brasil e França por causa da gestão dos incêndios na Amazônia saiu do controle nos últimos dias, mas que agora é hora de “virar a página”.

“Houve excessos de parte a parte”, afirmou, referindo-se aos insultos de ministros brasileiros e do próprio Jair Bolsonaro ao presidente francês, Emmanuel Macron, e à mulher dele, Brigitte Macron —que Serra descreveu na TV francesa, nesta segunda-feira (26), como “muito bonita, inteligente, elegante e charmosa”.

O embaixador endossa as críticas de Bolsonaro à suposta ingerência internacional na região da floresta —o presidente afirmou na semana passada que seu par francês manifestava “mentalidade colonialista” ao retratar a situação atual como “crise internacional".

Luís Fernando Serra, atual embaixador brasileiro na França, durante sabatina quando foi indicado ao cargo de embaixador na Coreia, em 2016 - Marcos Oliveira/Agência Senado

Também ratifica o discurso de ceticismo do presidente brasileiro sobre as ONGs que atuam na região amazônica. “Dá para desconfiar que tem uma agenda escondida quando você vê 300 ONGs na Amazônia e zero no Nordeste. Por que 55 milhões de nordestinos não mereceram uma ONG, e os 25 milhões que moram na Amazônia mereceram 300?”

Dito isso, é preciso esquecer a rixa com a França, defende Serra, em nome do “patrimônio [comum] extraordinário”, de uma relação bilateral de 500 anos que “é a mais completa que o Brasil pode ter com um país europeu”, porque inclui o aspecto fronteiriço (na Guiana Francesa).

Como o sr. recebeu a afirmação de Macron nesta segunda-feira de que o Brasil merecia um presidente à altura do cargo?

Achei forte. Temos que virar a página e continuar na construção da parceria estratégica [“selo” que a relação bilateral franco-brasileira ganhou em 2008], aprofundar todos os lados da cooperação.

Ela é a mais completa que o Brasil pode ter com um país europeu, porque, além de cobrir todos os aspectos do relacionamento bilateral, inclui o fronteiriço [na Guiana, território francês] e o elo sentimental. Não tem nenhum país na Europa, nem mesmo Portugal, que tenha todos esses lados.

Temos muita coisa a construir. O brasileiro e o francês se estimam, se conhecem, se adoram —isso é motivação para que os governos façam cada vez mais. É um patrimônio extraordinário, de 500 anos. São vínculos antigos: veja a missão [artística] francesa [no século 19], a missão que chegou nos anos 1930 para fundar a USP.

Após os insultos contra o presidente francês e sua mulher por parte de membros do governo brasileiro, a escalada retórica de Macron não era esperada?

Acho que, no fim do dia [segunda-feira, 26], a tensão baixou. As bases [da relação entre os países] são muito sólidas: a admiração, a estima, o conhecimento recíproco entre brasileiros e franceses.

Mas o senhor reconheceu na TV francesa que o nível da conversa degenerou...

Houve excessos verbais, de parte a parte. Quem começou foram os franceses, porque chamaram o nosso presidente de mentiroso [na sexta-feira, 23].

Na verdade, o presidente Bolsonaro reagiu na véspera [quinta, 22] a uma publicação na internet de Macron, falando que o francês tinha “mentalidade colonialista”...

Mas é evidente. Isso me lembra a Conferência de Berlim de 1884, em que europeus decidiram o futuro da África sem chamar os africanos. Dentro das fronteiras, aquilo que é nosso pedaço da Amazônia é brasileiro, ponto final. Vai propor a internacionalização da Sibéria para o Putin... ora! Isso é um papo que não pode prosperar, entende?

Ajuda internacional significaria necessariamente ingerência?

Não. O que significa ingerência é decidir o futuro da Amazônia sem o Brasil. Todos os mecanismos de ajuda à Amazônia [até hoje] foram negociados com o Brasil presente à mesa. Essa história de o G7 se reunir sem o Brasil e decidir que o Brasil é uma questão internacional não é aceitável, de forma alguma.

A parte da Amazônia que está dentro das nossas fronteiras é brasileira, não tem relativização de soberania nenhuma [possível]. Estamos de brincadeira? Estão pensando que o Brasil é o quê?

E tem mais. Não vi um jornalista falar, em 2005, dos incêndios que houve na Amazônia. Em 2015, alguém disse que os incêndios na Califórnia eram culpa do [ex-presidente dos EUA Barack] Obama? Porra.

Todo mundo se virou contra o Bolsonaro, sempre arrumando pretexto porque ele falou das ONGs [apontou-as como responsáveis pelo aumento das queimadas]. 

Dá para desconfiar que tem uma agenda escondida quando você vê 300 ONGs na Amazônia e zero no Nordeste. Uma de duas: ou há agenda escondida ou preconceito com os nordestinos. Escolham uma.

Por que 55 milhões de nordestinos não mereceram uma ONG, e os 25 milhões que moram na Amazônia mereceram 300? Ora, todo mundo sabe que tem índio que fala holandês, norueguês e sueco, mas não fala português. Tá me entendendo?


Mais de 200 mil ONGs atuam no Nordeste

O Mapa das OSCs (Organizações da Sociedade Civil) —termo usado como sinônimo para ONGs—, realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mostra que há 205.182 organizações que atuam no Nordeste brasileiro, nas mais diferentes áreas.

Nos estados que compreendem a floresta amazônica no Brasil (AC, AP, AM, MA, MT, PA, RO, RR e TO) há 105.851 entidades do tipo. O mapa é alimentado por fontes públicas e privadas, atualizadas constantemente, e por informações enviadas diretamente pelas OSCs e por entes federados


​​​​​​​O sr. teve algum contato nos últimos dias com o Ministério das Relações Exteriores da França?

Nenhum. O embaixador da França no Brasil me ligou para pedir um telefone, só.

Como fica a imagem internacional de comedimento e pacifismo da diplomacia brasileira diante do fogo cruzado dos últimos dias?

O Brasil continua sendo incontornável. Isso não muda. Temos a quinta população do mundo [na verdade, a sexta] e a quinta superfície. Somos número 1 em diversos produtos agrícolas. Na base de todo esse problema está o fato de que nossa agricultura é muito competitiva. Isso incomoda.

O que será da relação franco-brasileira daqui para frente? 

A Agência Francesa de Desenvolvimento já financiou 1,9 bilhão de euros no Brasil. Somos o quinto país mais importante para eles, que privilegiam projetos com energia limpa, renovável. O plano para a construção de quatro submarinos convencionais e de um nuclear é coisa de 9 bilhões de euros.

Eles serão entregues até 2029. Foi construída uma base naval em Itaguaí (RJ) que é uma coisa de louco. Os franceses não nos achavam capazes disso. Hoje, estão chamando soldadores nossos. E tem Carrefour, Casino, L’Oréal, Peugeot, Renault, mil empresas francesas no Brasil, com 500 mil empregos diretos. Queremos atrair mais. O Brasil, com a casa arrumada, vai decolar.

O sr. acha que Macron tem mesmo a intenção de não ratificar o acordo comercial entre União Europeia e Mercosul, ou suas declarações recentes são um blefe para pressionar o Brasil?

A oposição à ratificação do acordo na França é muito dura, ainda que isso não se repita na Alemanha ou na Espanha, por exemplo. Não arrisco um palpite.

Intercâmbio cultural

1816 - Missão artística francesa 
A pedido do príncipe regente dom João 6º, um grupo francês de pintores, escultores, arquitetos e gravuristas veio ao Brasil fundar a primeira instituição oficial de ensino de artes, a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios (Academia Imperial de Belas Artes depois de 1826)

1934 - Fundação da USP
A fundação da universidade congregou sete instituições já existentes, como a Faculdade de Direito e a Faculdade de Medicina, e criou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Entre os primeiros docentes convidados, estavam aqueles da missão francesa, como o historiador Fernand Braudel e o antropólogo Claude Lévi-Strauss

1959 - Criação da Casa do Brasil (“Maison du Brésil”) na Cidade Universitária de Paris
Até hoje, acolhe professores, pesquisadores e estudantes brasileiros que chegam a Paris em programas acadêmicos, bem como artistas e profissionais em estágio de aperfeiçoamento. O ex-ministro do STF Francisco Rezek e o fotógrafo Sebastião Salgado já passaram por lá

2005 - Ano do Brasil na França
França recebeu cerca de 400 eventos relacionados a teatro, cinema, dança, fotografia, gastronomia, esporte, música, artes plásticas, literatura e design brasileiros. Gilberto Gil e Caetano Veloso fizeram um show na praça da Bastilha, em Paris. Em 2009, foi a vez da França vir ao Brasil com a mesma iniciativa

Acordos políticos

1826
Tratado de Amizade, Navegação e Comércio entre o Brasil e a França. O documento acordava, em 26 artigos, tópicos como a paz constante e a amizade perpétua, liberdade de comércio e navegação e políticas para criminosos

2003
O Brasil é convidado a participar da cúpula do então G8, realizada na cidade francesa de Evian, a convite da França

2008
O ex-presidente francês Nicolas Sarkozy e o ex-presidente Lula assinam o Plano de Ação da Parceria Estratégica Brasil-França, voltado para cooperação nas áreas de defesa, espaço, energia nuclear, desenvolvimento sustentável, ciência e tecnologia, temas migratórios, entre outros

2017
Inauguração da ponte sobre o rio Oiapoque, que liga Oiapoque, no Amapá, e Saint-Georges de l’Oyapock, no território ultramarino da França, a Guiana Francesa. O investimento de R$ 68 milhões foi rachado meio a meio entre Brasil e França

2018
O submarino Riachuelo, fruto do Plano de Ação da Parceria Estratégica Brasil-França, é lançado ao mar no mês de dezembro, sob o ex-presidente Michel Temer

Fontes: Biblioteca Nacional Digital, FGV CPDOC, Maison du Brésil, Jornal da USP, Ministério da Economia, Ministério das Relações Exteriores e Portal da Câmara dos Deputados

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