Neofascistas se unem à máfia em ameaças a jornalistas na Itália

Grupos de extrema direita juram de morte repórter que os investiga; 22 profissionais andam com escolta no país

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Lucas Ferraz
Roma

Num país que convive há décadas com os perigos da máfia, as autoridades passaram a lidar recentemente com um nova preocupação: a violência dos grupos neofascistas, responsáveis por ameaçar de morte um jornalista dedicado a investigar o crescimento e as conexões dessas organizações na Itália.

Alvo dos extremistas, o repórter Paolo Berizzi se transformou no início deste ano no 22º jornalista italiano a contar com escolta armada. 

Ele é o único incluído no serviço de proteção por motivos políticos —todos os demais são ameaçados por mafiosos.

O jornalista Sandro Ruotolo, que anda com escolta armada, em lançamento de livro em loja em Bolonha
O jornalista Sandro Ruotolo, que anda com escolta armada, em lançamento de livro em loja em Bolonha - Roberto Serra - 21.mar.19/Iguana Press/Getty Images

“Um jornalista sob escolta por ameaças de neofascistas, 74 anos depois do fim do fascismo, é um sinal do clima de raiva e ódio no país”, conta Berizzi, que trabalha no jornal La Repubblica e é autor de “Nazitalia”, livro que narra o submundo e a forma de atuação de pelo menos 15 grupos extremistas —neonazistas e neofascistas— existentes na Itália.

Na obra, ele também explora as conexões políticas das organizações, que apoiam a agenda de Matteo Salvini, ministro do Interior, vice-premiê do governo e o político mais popular do país. 

Salvini já se aliou no passado ao Casa Pound, grupo que também é partido político e defensor do legado do ditador fascista Benito Mussolini.

O discurso agressivo de Salvini contra o jornalismo —que ele considera um inimigo, como Bolsonaro e Trump— contribui para convulsionar ainda mais o ambiente.

Nesta semana, o ministro insultou um jornalista que flagrou seu filho adolescente numa praia se divertindo num jet-ski da polícia —e ainda sugeriu que ele é pedófilo, incentivando-o a ir filmar outros jovens.

Alguns dos grupos que ameaçaram Berizzi, como o Forza Nuova, já agrediram outros repórteres, como aconteceu em março com dois profissionais da revista L’Espresso que cobriam um ato em Roma. 

Seus integrantes são conhecidos das páginas policiais devido a ataques contra imigrantes e minorias étnicas como os ciganos (alvos da política de Salvini).

A escalada dos ataques contra Berizzi foi gradual: primeiro surgiram recados no seu automóvel, pichações de suásticas no portão de sua casa e a invasão de uma livraria onde ele apresentava o livro. Até que chegaram as ameaças explícitas de assassinato, estendidas também à família.

“As ameaças da extrema-direita geralmente envolvem ações para espetacularizar, quase sempre em locais públicos, como fizeram na invasão da livraria. A máfia é diferente, age nas sombras”, conta Raffaele Lorusso, secretário-geral da Federação Nacional da Imprensa Italiana (FNSI, em italiano).

A Itália é o país da Europa ocidental com o maior número de jornalistas ameaçados. Desde os anos 1960, 28 repórteres foram assassinados, a maioria por ordem do crime organizado. A última morte ocorreu em 2014.

A FNSI integra um centro de coordenação instituído pelo Estado italiano há dois anos para monitorar as ameaças. Mas, desde junho de 2018, quando foi formado o atual governo, uma aliança entre a Liga, de extrema direita, e o populista Movimento 5 Estrelas, as reuniões escassearam.

O Movimento 5 Estrelas, cujo programa político é baseado em consultas na internet, também tenta golpear o jornalismo, conforme acrescenta Lorusso. O partido quer cortar parte da verba do governo destinada à informação pública.

A situação piora ainda mais, ressalta, com o discurso de Salvini, que já ameaçou publicamente retirar a escolta do jornalista Roberto Saviano, autor do livro “Gomorra”, sobre os subterrâneos da máfia. Saviano está sob proteção desde que a obra foi publicada, em 2006.

O escritor, crítico de Salvini e alvo frequente do político, vive a maior parte do tempo fora da Itália, com policiais cedidos pelo Estado. O ministro afirma que quer rever as escoltas para que os agentes sejam usados para proteger a população.

Em fevereiro, noticiou-se que o ministério do Interior retiraria a escolta do veterano repórter Sandro Ruotulo, sob proteção desde 2015. Vivendo em Nápoles, ele investiga a máfia desde os anos 1980 e entrou na mira após desvendar a venda de lixo tóxico pelo crime organizado.

Como aconteceu em outros casos, as autoridades descobriram que Ruotolo corria risco ao interceptar uma conversa do chefe de um clã mafioso na qual ele falava que queria esquartejar o jornalista vivo.

A ameaça de retirar a escolta surgiu após Ruotolo fazer uma reportagem sobre a máquina virtual utilizada pela equipe de Salvini para engajar seguidores e difundir informações —o trabalho mostrou que perfis de seguidores dos Bolsonaros, ativos na eleição brasileira, estavam sendo usados na Itália para difundir conteúdos favoráveis à Liga, tratando-se na verdade de “bots” (robôs).

Após protestos, a escolta foi mantida. “A máfia não emite uma sentença de morte e depois a retifica”, comentou Ruotolo, que considera a realidade italiana “muito perigosa”. “Mas pelo menos ainda podemos contar com a proteção do Estado.”

Para a sorte dele, de Saviano e de outros ameaçados, não é Salvini quem decide a necessidade de proteção, mas um comitê formado por diversas instituições.

Existente há mais de dois séculos, antes ainda da unificação da Itália, a máfia infiltrou-se no Estado e na economia e parece invencível. 

Já quanto aos grupos neonazistas e neofascistas, Berizzi pergunta: “Eles atuam abertamente e disputam eleições sem nenhum constrangimento. Por que o Estado não acaba com eles?”.

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