Descrição de chapéu The Washington Post

Para jovens norte-coreanos, K-pop é inspiração para desertar

Música sul-coreana mina propaganda do regime norte-coreano

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Simon Denyer Min Joo Kim
Seul | The Washington Post

​Quando menina, Ryu Hee-Jin foi criada para cantar músicas patrióticas que elogiavam a vontade de ferro, a coragem e a compaixão do líder da Coreia do Norte à época, Kim Jong Il.

Então ela ouviu música pop americana e sul-coreana.

 

"Quando você ouve a música norte-coreana, não sente emoções", disse ela. "Mas quando escuta música americana ou sul-coreana, ela literalmente lhe causa arrepios. As letras são tão vigorosas, tão relacionáveis. Quando a moçada escuta essa música, suas expressões faciais mudam."

A música ocidental ajudou a abrir um buraco na Cortina de Ferro —os jovens soviéticos ouviam gravações ilegais dos Beatles e, em 1987, jovens berlinenses orientais se reuniam perto do Muro para ouvir a performance emocionada de "Heroes", de David Bowie, no lado oeste da cidade dividida.

Ryu Hee-jin pratica movimentos de dança em um estúdio de dança em Seul, na Coréia do Sul
Ryu Hee-jin pratica movimentos de dança em um estúdio de dança em Seul, na Coréia do Sul - Jean Chung/The Washington Post

Hoje há evidências de que o K-pop sul-coreano está desempenhando um papel semelhante ao minar sutilmente a propaganda do regime norte-coreano, com um número crescente de desertores citando a música como um fator de sua desilusão com o governo, segundo Lee Kwang-Baek, presidente do Unification Media Group (UMG) da Coreia do Sul.

A tendência, alimentada pela crescente propriedade de celulares na Coreia do Norte e pelo comércio ainda pujante com a China, provocou uma nova repressão por parte de Pyongyang no ano passado, segundo reportagens do Daily NK, serviço de notícias dirigido por desertores com amplas ligações com o Norte.

Isso se seguiu à promessa de Kim Jong Un em 2018 de "esmagar a cultura reacionária burguesa".

Uma pesquisa da UMG com 200 desertores recentes, divulgada em junho, revelou que mais de 90% tinham assistido a filmes, TV e música estrangeiros na Coreia do Norte; 75% sabiam de alguém que havia sido punido em consequência disso; e mais de 70% disseram que se tornou mais perigoso acessar a mídia estrangeira desde que Kim Jong Un assumiu o poder, no final de 2011.

Ryu é uma dos muitos desertores que dizem que o K-pop e a música popular ocidental abriram seus olhos, convencendo-os de que a Coreia do Norte não era o paraíso e que suas melhores perspectivas estavam fora do país.

Em seu quarto em Pyongyang, a capital norte-coreana, Ryu às vezes ficava acordada a noite toda assistindo a um único videoclipe —repetidamente, por medo da polícia.

"Sempre fomos ensinados que os americanos eram lobos, e que os sul-coreanos eram seus fantoches", disse ela, "mas quando você ouve a arte deles, tem de admirá-los".

Ela se lembra de Céline Dion, do violinista britânico "com cabelo maluco" Nigel Kennedy e da "boy band" irlandesa Westlife, bem como das bandas K-pop TVXQ, Girls' Generation e T-Ara.

Nascida em uma família musical, Ryu tocava "gayageum", um instrumento tradicional de cordas coreano semelhante a uma cítara, em uma escola de artes em Pyongyang.

Um período na equipe nacional de nado sincronizado foi seguido por um emprego como garçonete no sul da Europa.

Lá, ela passava as noites em boates dançando "Gangnam Style" com colegas de trabalho e amigos sul-coreanos. Em 2015, aos 23, desertou para o Sul.

Antigos desertores que vivem na Coreia do Sul há muito entendem o poder das notícias e da cultura estrangeiras para combater a propaganda do regime.

Projetos como o Flash Drives for Freedom são contrabandeados em pendrives carregados com filmes de Hollywood e programas de televisão americanos, além de dramas e videoclipes sul-coreanos.

A Voz da América, a Rádio Ásia Livre, o Serviço Mundial da BBC e estações dirigidas por desertores transmitem programação de rádio em coreano para o Norte —principalmente notícias, mas também música.

Mas o crescimento da empresa privada pode ser o mais poderoso promotor de mudanças, com vídeos trazidos em massa por comerciantes que vão e vêm da China.

Os riscos para os telespectadores são reais: uma unidade especial da polícia e dos serviços de segurança conhecida como Grupo 109 é responsável pela repressão constante.

Mesmo os menores que são pegos podem enfrentar de seis meses a um ano de treinamento ideológico em um campo de reeducação —a menos que seus pais possam subornar—, e os adultos podem enfrentar uma vida inteira de trabalho pesado ou, para material sensível, até a execução.

Não apenas as melodias e as letras são cativantes, mas também as roupas e os penteados dos artistas.

"O tipo de coisa que eu queria fazer era pintar meu cabelo e usar minissaia e jeans", disse Kang Na-ra, 22.

"Certa vez fui de jeans ao mercado e me disseram que eu tinha que tirá-los. Eles foram queimados na minha frente."

Kang, que tinha sido cantora em uma escola de artes em Pyongyang, desertou em 2014, para assim "poder se expressar livremente".

Ela tentou entrar no K-pop, mas diz que os estilos de canto são muito diferentes. Agora ela tem uma carreira de sucesso como personalidade da TV e atriz, principalmente retratando os norte-coreanos em filmes e dramas sul-coreanos.

Kang Na-ra, à esquerda, filma a si mesma enquanto caminha pelas ruas de um distrito comercial em Seul, Coreia do Sul (Jean Chung/The Washington Post)
Kang Na-ra, à esquerda, filma a si mesma enquanto caminha pelas ruas de um distrito comercial em Seul, na Coreia do Sul - Jean Chung/The Washington Post

​​Han Song-ee tinha apenas 10 anos quando viu pela primeira vez um vídeo de Baby V. O. X tocando em um "Show pela Unificação" em Pyongyang, em 2003, para uma plateia de norte-coreanos comicamente impassíveis.

"No começo era chocante e estranho ver aqueles 'vândalos capitalistas', mas ao ouvir a música deles percebi que era cativante", disse.

Logo ela foi fisgada. Seu pai ficou irritado com a mãe por copiar o penteado da banda.

Mais tarde, Han e suas amigas começaram a usar as leggings coloridas popularizadas pela banda sul-coreana Girls' Generation —mas apenas em seu bairro, não no centro da cidade.

Han desertou em 2013 e agora é uma vlogger conhecida em Seul, onde também aparece no rádio e na televisão. Ela diz que sonha que os norte-coreanos possam assistir a seus programas e que seus pais sintonizem "para que eles possam ver o quanto sou livre".

Han Song-ee checa seu celular antes do programa de rádio que apresenta em Seul começar (Jean Chung/The Washington Post)
Han Song-ee checa seu celular antes de o programa de rádio que apresenta começar - Jean Chung/The Washington Post

Os líderes da Coreia do Norte têm mostrado impulsos contraditórios quando se trata do Sul, forçando uma narrativa da unificação coreana, mesmo quando desencorajam as contracorrentes culturais internas.

No ano passado, Kim participou de uma apresentação musical sul-coreana em Pyongyang, que incluiu divas da música mais antigas, músicos de rock masculino e jovens artistas de K-pop, incluindo uma banda feminina chamada Red Velvet.

O show foi transmitido na íntegra no Sul, mas apenas em trechos de noticiários no Norte.

Uma mulher de cerca de 20 anos, que fugiu da Coreia do Norte no ano passado, disse que o vídeo do show foi compartilhado a portas fechadas em sua cidade natal, perto da fronteira com a China.

Ela falou sob a condição do anonimato por questões de segurança. "Parece que Kim Jong Un aplaudiu a performance, mas nós só pudemos ver às escondidas imagens contrabandeadas, porque consumir música sul-coreana ainda era um crime que poderia nos levar à prisão", afirmou.

Depois que desertou, disse Ryu, ela soube por um documentário da TV que Kim Jong Il, pai do atual líder do país, era fã de cinema e programas de TV sul-coreanos.

"Eu fiquei furiosa", disse ela. "Nós literalmente choramos quando cantamos sobre as dificuldades da vida de Kim Jong Il. Nunca imaginei que ele assistisse à TV sul-coreana."

Hoje em dia, Ryu estuda para ter um diploma de administração, mas ainda sonha em invadir o K-pop ou—melhor ainda— Hollywood.

"É incrível como eu cheguei longe", disse ela. "A música sul-coreana realmente teve um papel central em me levar por essa jornada."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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