Premiê da Itália renuncia, culpa Salvini e afunda país em incerteza

Com queda de Giuseppe Conte, Roma poderá ter décima mudança de governo em 20 anos

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Lucas Ferraz
Roma

Após mais de dez dias de caos, o governo da Itália foi oficialmente encerrado na tarde desta terça-feira (20), depois de um duro discurso no Parlamento do primeiro-ministro, Giuseppe Conte, que anunciou sua demissão do cargo. 

A crise, contudo, ainda está longe do fim. 

 
O encerramento prematuro do governo, iniciado há 14 meses, foi provocado por um dos seus integrantes, o vice-premiê e ministro do Interior, Matteo Salvini
O premiê italiano Giuseppe Conte durante discurso de renúncia
O premiê italiano Giuseppe Conte durante discurso de renúncia - Andreas Solaro/AFP

Líder da Liga, partido da ultradireita que compunha a aliança com o populista Movimento 5 Estrelas, Salvini detonou a crise no último dia 8, quando apresentou uma moção de desconfiança contra o próprio Conte.

A decisão surpreendeu a todos sobretudo pelo momento –no início das férias de verão. Salvini, aliás, apresentou o documento após uma turnê nas praias italianas, onde fez inúmeras selfies sem camisa com admiradores e dançarinas.

Ao dar o passo para derrubar o governo, Salvini se dirigiu aos italianos citando uma famosa frase do ditador fascista Benito Mussolini proferida em 1922, quando o Duce chegou ao poder: “Peço aos italianos para me dar plenos poderes”.

Seu objetivo é se tornar o próximo primeiro-ministro da Itália. Se houver eleição até novembro, como deseja o líder da Liga, não parece haver outro adversário capaz de derrotá-lo nas urnas.

No último ano, ele se transformou no político mais popular do país —tem cerca de 36% das intenções de voto. Contudo, a atual crise poderá ser resolvida no Parlamento, no qual seu partido não tem maioria. 

Ao discursar ao lado de Salvini, Giuseppe Conte fez duras críticas a ele: “O ministro do Interior age por interesses pessoais e partidários, não se importando com as consequências da decisão, que coloca em risco o país do ponto de vista econômico, político e social”.

E ressaltou: “Preocupa que você peça plenos poderes e invoque o poder do povo”. 

Como a Itália é um regime parlamentarista, a convocação da próxima eleição ainda depende de uma série de fatores –a sua realização ainda não é certa.

A decisão caberá ao presidente da República, Sergio Mattarella, espécie de árbitro que tem funções decorativas e não participa do governo.

Ele aceitou a decisão de Conte e, a partir desta quarta-feira (21), iniciará o processo de consulta aos partidos com representação no Parlamento.

Dessa consulta poderá sair um novo governo entre o Movimento 5 Estrelas (crítico à elite política) e o Partido Democrático (a centro-esquerda tradicional), adversários no passado que teriam maioria para um novo mandato.

O objetivo dessa manobra, como dizem os integrantes das duas siglas, seria barrar a ascensão do radicalismo de Salvini.

Caso o presidente italiano não encontre uma solução até a tarde de quinta-feira (22), o Parlamento então será dissolvido, e novas eleições serão convocadas —três anos e meio antes do programado.

Um dos líderes europeus da direita populista, Salvini tem como referências políticas –citadas por ele recentemente– o russo Vladimir Putin, o americano Donald Trump, o húngaro Viktor Orban e o brasileiro Jair Bolsonaro

Segundo o cientista político Giovanni Orsina, Salvini é um político verdadeiramente populista, com uma comunicação direta e eficaz na qual é possível ver traços de outras lideranças como Trump e Bolsonaro – “ele é uma espécie de caudilho, que vocês da América Latina conhecem tão bem”. 

“Berlusconi inaugurou esse populismo na Itália há 25 anos, mas sua atuação, de certa forma, se dava dentro das instituições. Salvini, ao contrário, está sempre na praça, ou na praia, nunca dentro das instituições.”

Aos 46 anos, divorciado e pai de dois filhos, Matteo Salvini tornou-se o político mais popular na Itália no último ano graças às suas habilidades de comunicação e a uma poderosa máquina nas redes sociais.

Nascido em Milão, onde iniciou a carreira política como vereador, Salvini chegou a flertar com a esquerda no passado. Tornou-se jornalista, atuando numa rádio da Liga, e não concluiu os cursos de história e ciência política. 

Até sua ascensão nacional, teve atuação discreta no Parlamento Europeu e na Câmara dos Deputados, sempre com um discurso xenófobo contra imigrantes e até os italianos do sul –ele já foi flagrado cantando com torcedores do Milan, seu time do coração, uma música ofensiva a napolitanos. 

Ele assumiu a liderança da Liga Norte no final de 2013, deixando para trás seu mentor, Roberto Maroni, num momento em que o partido tinha apenas 4% das intenções de voto no país.

Em cinco anos conseguiu realizar grandes mudanças. Tirou o Norte do nome da legenda e a popularizou exatamente no Sul, onde se elegeu senador pela região da Calábria na eleição de março de 2018.

Radical em temas como casamento gay e defesa da família, linha-dura em relação a segurança pública e com uma política anti-imigração, Salvini, já ministro do Interior, levou o governo italiano a fechar seus portos para embarcações que socorrem refugiados no Mediterrâneo. 

Mas ele pode ter dado um passo em falso ao provocar o fim do governo. 

“Provavelmente Salvini errou no tempo e não calculou as reações contrárias, mas não sabemos se essas reações contrárias vão prevalecer", afirmou o historiador e cientista político Giovanni Orsina, diretor da Escola de Governo da Luiss, uma universidade romana. 

"A política na Itália é sempre maquiavélica e psicótica”, completou ele. 

Orsina admite ter enormes dificuldades para analisar o cenário e o que deverá acontecer. 

Se não houver um acordo entre os partidos políticos, o presidente Sergio Mattarella poderá escolher um governo técnico para tratar de temas urgentes, como a aprovação de um orçamento nacional que deverá ser apreciado pela União Europeia até o próximo mês.

Há ainda o risco da crise política deteriorar ainda mais a cambaleante economia do país. Não está descartado um aumento dos impostos. 

Se a decisão for ir às urnas, o partido de Salvini, muito provavelmente, tentará uma aliança com a Força Itália, sigla de direita de Silvio Berlusconi, e os Irmãos da Itália, outro partido da direita radical e anti-imigrantes. 

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, há 74 anos, a Itália já teve 65 governos —um dos mais instáveis do mundo.

O futuro do governo que agora se encerra estava comprometido pelo menos desde maio, após o resultado das eleições europeias, que confirmou a popularidade da Liga de Matteo Salvini.

O resultado do pleito mudou a correlação de forças entre o partido e o Movimento 5 Estrelas. 

A Liga obteve o maior porcentual de votos, 34%, enquanto o aliado ficou com 17% —praticamente uma inversão do resultado da eleição nacional de março de 2018.

O governo foi formado em junho do ano passado, com um contrato assinado em cartório (outro ineditismo na confusa política italiana) entre a Liga e o 5 Estrelas.

Mas, desde então, Salvini tornou-se o protagonista do governo, dominando a agenda política em temas como o combate à imigração e polemizando com líderes europeus como o presidente francês Emmanuel Macron. 

O cientista político Giovanni Orsina, porém, afirma acreditar que, numa eventual vitória do líder da Liga, sua comunicação populista não refletirá a agenda do governo, que segundo ele deverá ser mais próxima da clássica direita liberal. 

“A Liga não é um partido de revolucionários, é um partido de gente que tem muito a perder se a Itália sair da União Europeia, por exemplo. Grande parte da produção industrial do norte da Itália, base do partido, depende da Alemanha. Se ocorrer uma ruptura, as perdas seriam enormes”, afirma.

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