Reino Unido seguirá ligado à UE mesmo com brexit duro, diz especialista

Ex-diretor da Comissão Europeia diz acreditar que bloco deve se consolidar, e não entrar em colapso

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São Paulo

Cenário cada vez mais provável em 31 de outubro, a saída do Reino Unido da União Europeia (UE) sem um acordo não deve significar um rompimento total entre as partes.

Como em um relacionamento, a ilha deve continuar profundamente conectada ao continente, tanto por razões comerciais quanto históricas. E não só: o bloco europeu adotará um caminho de reforço de sua identidade, com uma "política de pequenos passos", contrariando previsões de que entrará em colapso.

Para o cientista político Michael Leigh, este é o panorama mais provável a partir do momento em que o resultado do referendo britânico de 2016 seja efetivado.

Leigh trabalhou por quase 30 anos para órgãos da UE até chegar ao cargo de diretor-geral da Comissão Europeia, braço executivo do bloco.

Em conferência na Fundação FHC, em São Paulo, nesta quarta (22), o atual professor de estudos europeus do campus de Bolonha da Universidade Johns Hopkins diz acreditar que o cenário de um brexit duro seja o mais provável. Mas, caso isto de fato aconteça, essa história não terá chegado ao fim. 

Michael Leigh em conferência na Fundação FHC, em São Paulo - Vinicius Doti/Fundação FHC

"Haverá caos e filas na fronteira, o comércio será bloqueado, mas novas negociações começariam imediatamente. Independentemente do que aconteça, o Reino Unido permanecerá comprometido com a UE no futuro."

Mesmo que o Reino Unido se coloque à parte em relação aos vizinhos do outro lado do Canal da Mancha, os dois lados são inseparáveis há décadas. Isto porque, segundo ele, alguns dos pilares da União Europeia só existem em função da influência britânica e do fato de os países da ilha serem membros do consórcio. ​

Como exemplo dessa relação histórica, citou a implantação do mercado comum, "um projeto fortemente apoiado por Margaret Thatcher", ex-primeira-ministra do Reino Unido, e negociado "de mãos dadas" com o governo francês antes da fundação do bloco. "Isso foi essencialmente um projeto liberal britânico." 

Leigh, um britânico para quem "o projeto europeu foi benéfico para os povos da Europa e do Reino Unido", também afirmou que os britânicos tiveram forte influência na implantação de processos de transparência e de prestação de contas em órgãos da UE.

As consequências de um desligamento litigioso entre as partes seriam muito grandes para o Reino Unido, mas também consideráveis na União Europeia, alertou.

Os britânicos ficariam com a imagem de que são incapazes de negociar bons acordos comerciais com seus parceiros, além de terem uma queda de 1,5% a 2% do PIB, de acordo com economistas.

Também assistiriam à provável mudança das indústrias automotiva e de finanças para Amsterdã, Paris, Dublin ou até mesmo Nova York.

Por outro lado, a UE perderia o poder de negociação que tem com a presença do Reino Unido —"a sexta economia do mundo, dependendo de como você a calcula"— no bloco, e não poderia mais contar com a força militar da rainha para defesa. 

Apesar de lamentar o brexit, o responsável pela expansão do bloco para o leste europeu não pinta um cenário de pessimismo extremo para a UE.

O futuro do bloco não será nem seu colapso nem um relançamento do projeto europeu, mas sim um caminho do meio, que chama de "consolidação".

A ideia é que o bloco se apegue ao que já tem para tentar preservar o mercado único, e invista em um sistema "mais de cooperação entre governos do que de integração supranacional".

O caminho da moderação, diz, não seria uma solução de compromisso, mas sim "uma agenda bem cheia". 

Como exemplos, afirma que a UE poderia investir em criar um orçamento comum para a zona do euro —projeto já aventado pelo presidente francês, Emmanuel Macron, em 2017. 

Outras propostas seriam investir no controle de suas fronteiras, fornecendo melhor equipamento para os guardas costeiros; levar a sério as políticas climáticas, para que se cumpra o acordo de Paris; e instaurar políticas antitruste, com o objetivo de que as gigantes de tecnologia sejam taxadas nos países onde têm lucro.

Ao olhar para trás, Leigh diz que "não havia nada de inevitável no brexit". O processo teria acontecido sobretudo por falhas de liderança que começaram com "a decisão desastrosa e desnecessária" do ex-premiê David Cameron de convocar o plebiscito em 2016.

Em seguida, a história se complicou com as "negociações confusas" de Theresa May com Bruxelas a respeito do acordo de saída.

Seu estilo linha dura ao negociar, afirmando que o Reino Unido não ficaria no mercado comum, não acalmou os ânimos dos partidários do brexit dentro de seu próprio Partido Conservador. 

Pelo contrário, acabou por "jogar carne vermelha aos extremistas e só aumentar o apetite deles". 

Leigh também responsabilizou parcialmente Jeremy Corbyn, líder da oposição que teria tido posições "ambíguas" durante o processo que levou ao brexit.

Por fim, disse que a "democracia defeituosa do Reino Unido" permitiu que a campanha a favor da saída fosse baseada em "mentiras e distorções" pelas quais ninguém foi responsabilizado, e a da permanência fosse "levada a cabo de maneira pobre, sem mensagem clara" para o público.

Para ele, o brexit "tirou a visão dos outros países de que a união [com a Europa] não pode ser desfeita".

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