Descrição de chapéu Obituário Robert Mugabe (1924 - 2019)

Anti-Mandela, Mugabe apostou na via do confronto

Herói da independência do Zimbábue acabou se transformando em um ditador

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O então ditador do Zimbábue, Robert Mugabe, assiste a vídeo durante encontro em Joanesburgo (África do Sul)

O então ditador do Zimbábue, Robert Mugabe, assiste a vídeo durante encontro em Joanesburgo (África do Sul) Mike Hutchings - 17.ago.08/Reuters

São Paulo

Com a morte de Robert Mugabe nesta sexta-feira (6) enquanto fazia tratamento médico em Singapura, fecha-se um ciclo na história africana, o dos pais da pátria.

Foram-se as principais figuras que levaram dezenas de países à independência no século passado, quase sempre com enorme sacrifício pessoal.

Alguns representantes desse panteão ainda estão entre nós, como Kenneth Kaunda, da Zâmbia, firme aos 95 anos, e Sam Nujoma, da Namíbia, com 90.

Mas suas estaturas relativas são menores na comparação com Mugabe, Agostinho Neto (Angola), Samora Machel (Moçambique), Julius Nyerere (Tanzânia) e, claro, Nelson Mandela (África do Sul).

Mugabe (1924-2019) era, em muitos aspectos, o anti-Mandela. Ou, numa definição talvez mais apropriada, o Mandela que não deu certo.

A trajetória de ambos tem muitos paralelos. Eram líderes negros em países com minorias brancas que tomaram o controle do Estado e deram início a políticas segregacionistas.

Passaram longos períodos na prisão: Mandela ficou 27 anos encarcerado, e Mugabe, 11. Soltos após pressão internacional intensa, assumiram o controle de movimentos de libertação nacional e credenciaram-se como líderes populares.

Em determinado momento, na virada das décadas de 1970 e 1980, tinham estatura política semelhante.

Seus caminhos bifurcaram ao se sentarem na cadeira de presidentes. Mandela procurou a via da composição com a elite econômica de seu país, até porque tinha sobre si a ameaça constante da principal máquina militar do continente, ainda impregnada por forças leais ao antigo regime.

Foi uma aposta bem-sucedida, que evitou o confronto generalizado, apesar de a transição para a democracia não ter sido isenta de episódios de violência.

Mugabe tinha outros problemas para resolver. O Zimbábue é um país cindido etnicamente, entre a maioria shona e a minoria ndebele, e o presidente adotou uma estratégia de política identitária desde o começo de seu governo que se tornaria a base de seu regime autoritário.

Na eleição de 1980, que preparou o país para a independência, o voto seguiu linhas étnicas, e Mugabe elegeu-se com folga. Logo estaria dando início a uma campanha de intimidação nas áreas rivais que deixaram mais de 30 mil mortos.

A figura algo sinistra, de óculos pesados e rosto carrancudo, tornou-se com o passar dos anos um ícone do autoritarismo africano. Passou a perseguir a oposição e a imprensa e a controlar as cortes e o Legislativo.

Deixou aflorarem suas inclinações marxistas numa campanha retórica contra o imperialismo ocidental, que teve seu auge na reforma agrária feita na marra e sem compensação aos fazendeiros destituídos, quase sempre zimbabuanos brancos.

Isolado internacionalmente e com a economia agrícola desorganizada, o país enfrentou hiperinflação e protestos, reprimidos duramente.

Durante 37 anos ele sobreviveu no poder. Traiu aliados, cooptou possíveis adversários, apostou na divisão da oposição e fez imensos agrados aos militares, base de sua força política.

O apoio finalmente ruiu em novembro de 2017, quando sinais de que Mugabe estava preparando sua mulher, Grace, para sucedê-lo irritaram a ala dos militares ligada ao vice (e atual presidente) Emmerson Mnangagwa, que tinha expectativas de herdar o trono. O resultado foi a derrubada do ditador.

É preciso reconhecer que Mugabe contou por muito tempo com uma reserva de boa vontade popular à sua figura como liderança que venceu um regime detestável.

Seu mito de vovô libertador era cultivado anualmente em solenidades algo ridículas de aniversário, com bolo, danças e discursos inflamados.

Essa face de puro populismo ficou evidente em junho de 2010, pouco antes da Copa da África do Sul, quando o Brasil foi ao Zimbábue para um amistoso contra a seleção local.

Foi um presente para o ditador, então com 86 anos, que viu o estádio lotado de pessoas maravilhadas por estar assistindo de perto à mítica camisa canarinho.

Quando eu o abordei na saída do camarote presidencial, Mugabe falou à Folha por quase dois minutos.

"É um grande evento para nós. Nos deram uma honra. Estamos muito felizes", disse, para estupefação de seus seguranças, todos armados até os dentes. É possível que tenha sido o primeiro quebra-queixo da história do país.

Um dos soldados, com tom levemente ameaçador, pediu depois para checar meu passaporte e me perguntou em que hotel eu estava. Respondi prontamente, mas devo confessar que menti a localização. 

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