Descrição de chapéu The New York Times

Democracia do Reino Unido, desafiada por brexit e Boris Johnson, se mantém por enquanto

Apesar do caos político, britânicos estão contrariando as tendências populistas globais

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Max Fisher
Londres | The New York Times

Em seus primeiros dias como primeiro-ministro britânico, Boris Johnson experimentou algumas das táticas mais comprovadas da era populista.

Ele tentou um avanço hostil a seu próprio partido e às instituições governamentais, movendo-se para consolidar esse poder em suas mãos.

Manifestantes anti-brexit seguram bandeiras da União Europeia e do Reino Unido do lado de fora Parlamento britânico, no centro de Londres (Inglaterra) - Daniel Leal-Olivas/AFP

Ele explorou as regras e os procedimentos da democracia britânica, anunciando que suspenderia o Parlamento e, mais tarde, pedindo uma eleição que seus oponentes suspeitam que ele pretende adiar.

Johnson alavancou a crescente polarização política no Reino Unido, retratando qualquer oposição a seus planos como apoio a Jeremy Corbyn, o líder amplamente impopular do Partido Trabalhista.

E ele tentou justificar tudo, posicionando-se como um defensor da população em guerra com um establishment não confiável que deve ser enfrentado, e até esmagado, pelo lado de dentro.

Em todo o mundo democrático, esse manual tem tido um sucesso crescente. E no Reino Unido as condições são favoráveis. Pesquisas mostram uma crescente desconfiança das instituições e o apoio a pessoas de fora da corrente dominante e líderes poderosos. A votação de 2016 pela saída da União Europeia, seguida pela tomada de Corbyn no Partido Trabalhista e de Johnson no Conservador, tudo ressaltou o domínio do populismo.

Até agora, os movimentos de Johnson explodiram em seu rosto. O Parlamento se levantou contra ele. Seu partido se revoltou em número suficiente para que ele perdesse a maioria no governo. Embora ele tenha encantado seus principais apoiadores, há poucas evidências de que os eleitores subitamente se mobilizem atrás dele ou contra seus oponentes.

No fundo da era do populismo demolidor, em um dos países mais perturbados por essa tendência, os controles destinados a manter os políticos na linha estão, pela primeira vez, funcionando como pretendido.

Em um tempo de instituições e normas vacilantes, eles se mantiveram.

O Reino Unido, apesar de todo o evidente caos político, está contrariando as tendências populistas globais. Embora isso possa não durar muito, os especialistas dizem que oferece lições impressionantes de quando e como a democracia pode funcionar como pretendido --e quando não.

Menos democracia, em uma era de mais

Daniel Ziblatt, cientista político da Universidade Harvard que estuda o declínio democrático, deu crédito a vários aspectos técnicos da democracia britânica.

O sistema parlamentar britânico é considerado mais resistente a líderes carismáticos e a táticas de jogo duro do que um modelo presidencial. E sob sua Constituição não escrita as normas são extraordinariamente importantes, e por isso ferozmente protegidas. Mas Ziblatt enfatizou repetidamente uma lição maior que ele reconheceu que pode ser desconfortável.

A democracia britânica é, de certa forma, menos diretamente democrática do que outros sistemas ocidentais. Isso coloca menos poder nas mãos dos eleitores e da base partidária, e mais nas mãos das autoridades do partido e dos vigilantes institucionais.

"Os partidos são muito mais fortes —essa é a razão", disse Ziblatt. Comparado com países como os Estados Unidos, disse ele, "ainda é um sistema incrivelmente fechado".

Isso dificilmente tornou o Reino Unido imune ao populismo e, de fato, pode ter agravado a suspeita de que as elites sejam distantes e irresponsáveis. Mas fortaleceu as barricadas institucionais do país contra os efeitos da polarização e da reação populista.

Isso sugere, segundo Ziblatt, um possível fator na ascensão ocidental do populismo que está recebendo crescente atenção dos estudiosos: uma onda de reformas modernas que tornaram as democracias mais democráticas também pode ter corroído esses controles internos.

Os partidos políticos, que antes escolhiam candidatos a dedo, agora permitem que os membros do partido decidam em primárias. Referendos e iniciativas de votação são mais comuns. As redes sociais e a captação de recursos na Internet abriram as portas para quem está fora. As reformas eleitorais facilitam para os partidos de fora disputarem e vencerem.

Essas reformas deram poder aos eleitores, mas à custa de instituições e normas destinadas a restringir a política.

Hoje é mais fácil um forasteiro como Donald Trump dominar um partido que responde mais aos eleitores nas primárias do que aos chefes partidários. As eleições abertas facilitam para partidos extremistas como a direitista Alternativa para a Alemanha (AfD) atrair votos das maiorias da corrente dominante.

A governança por referendo permite que 52% dos eleitores britânicos anulem os tecnocratas do governo que dizem que o brexit apresenta o risco de um desastre.

Em um livro que descreve o colapso das democracias, que ele escreveu com um colega cientista político da Universidade de Harvard, Steven Levitsky, Ziblatt identificou o excesso de democracia direta como um fator de risco, mas descobriu que a conclusão contradizia a crença dos leitores na democracia como uma força categórica do bem.

"Quando Steve damos palestras, essa sempre é a coisa menos popular que dizemos", disse Ziblatt.
Há um apoio crescente a essa visão, ainda que impopular. Um livro recente dos cientistas políticos Frances McCall Rosenbluth e Ian Shapiro, "Responsible Parties: Saving Democracy From Itself" [Partidos responsáveis: salvando a democracia de si mesma], descobriu que algumas reformas pioram a qualidade e a capacidade de resposta da democracia.

Mas o Reino Unido ficou um pouco atrasado ao instituir essas reformas. Onde as experimentou, por exemplo, ao permitir uma eleição aberta de líderes partidários, as forças populistas cresceram. Onde o Reino Unido ainda não as seguiu, suas instituições e normas se preservaram.

Os legisladores britânicos comuns, por exemplo, ainda ganham a indicação de seu partido ao serem selecionados, em vez de disputar uma primária. Assim, enquanto Johnson pode se tornar líder do partido apelando a seus membros ideológicos mais fervorosos, sua própria coalizão pode ignorar mais facilmente esses eleitores, como fez ao interromper a estratégia do brexit linha-dura de seu líder.

Quando o jogo duro falha

Os juristas têm uma expressão para movimentos como a tentativa de Johnson de suspender o Parlamento: "jogo duro constitucional".

Ele estava tecnicamente dentro das regras da democracia britânica, que permitem ao primeiro-ministro "prorrogar" o Parlamento, suspendendo-o com o consentimento do monarca. Mas ele estava explorando essas regras para obter vantagem política, excluindo o Parlamento de grande parte de um debate sobre o brexit que ele provavelmente perderia. E fez isso às custas de normas não escritas, que favorecem o envolvimento do Parlamento em uma decisão dessa magnitude.

Jogo duro constitucional desse tipo tem sido uma marca da era populista. É encorajado pela polarização política, que leva os apoiadores de um partido a ver seus oponentes como tão perigosos que detê-los é mais importante do que salvaguardar as normas democráticas. É favorecido pelos líderes populistas que veem o regime do poder e o esmagamento do sistema como direito próprio.

Mas pode ser perigoso.

Obriga os partidos de oposição a revidar em espécie, arriscando um ciclo de retaliação que levou as democracias a se desgastar ou entrar em colapso total, ou a mostrar restrições ao custo de aceitar uma desvantagem potencialmente permanente.

"Olhe para qualquer democracia falida e você encontrará dificuldades constitucionais", escreveram Levitsky e Ziblatt.

Mas Johnson falhou, contrariando a tendência. E a oposição o virou de costas sem jogar duro, mantendo, mais que corroendo, as normas que Johnson procurava alavancar.

"Quando o governo ultrapassou sua autoridade executiva, os parlamentares conseguiram usar instituições formais para retomar o controle e tentar consertar a crise atual", disse Alexandra Cirone, cientista política da Universidade Cornell. "Isso é uma boa coisa!"

Isso ressalta uma das leis mais antigas da ciência política: sistemas parlamentares como o do Reino Unido são considerados mais estáveis que os modelos presidenciais. Isso é especialmente verdadeiro quando se trata dos perigos do jogo duro constitucional.

Neste último, um presidente e um Legislativo de oposição podem usar suas respectivas bases de poder para travar uma guerra partidária, que pode escalar e sair de controle. Em um sistema parlamentar, Johnson está jogando duro contra os próprios membros da coalizão de cujo apoio ele precisa para continuar no poder.

Em vez de recorrer a táticas semelhantes, esses parlamentares simplesmente votaram contra ele ou atravessaram o corredor.

O excepcionalismo democrático do Reino Unido --enraizado em sua adoção tardia das medidas de democracia direta mais comuns em outras partes do Ocidente-- também pode ter desempenhado um papel.

John Bercow, presidente da Câmara dos Comuns, chamou as ações de Johnson de "indignação constitucional" que "minam suas credenciais democráticas".

Como funcionário apartidário, com tremendo poder processual sobre o Parlamento, Bercow encarna as maneiras como o sistema político britânico administra a tensão entre a vontade popular, de um lado, e as instituições e normas, do outro.

Toda vez que ele prevalece sobre um líder como Johnson, o que parece ser frequente, é um lembrete de que o sistema às vezes favorece normas e instituições de maneiras diferentes de outras democracias.

Cirone disse que não está claro se a resiliência momentânea da democracia britânica indica proteções institucionais duradouras contra alguns dos excessos do populismo, ou apenas uma pausa temporária na ascensão do populismo no país.

Como os legisladores conservadores impediram Johnson sacrificando sua própria participação no partido, disse ela, isso pode funcionar apenas uma vez. "Se um político mostrar que está disposto a se posicionar, a enfrentar o primeiro-ministro e o brexit, ficará fora da política", disse ela.

Em longo prazo, observou, "é ruim para a política".

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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