Los Angeles vê aumento da população de rua em meio a crise de habitação

Problema é mais grave na região de Skid Row, que vira ferida aberta no centro da cidade

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Moradores de rua no Skid Row, com prédios do centro financeiro de Los Angeles ao fundo

Moradores de rua no Skid Row, com prédios do centro financeiro de Los Angeles ao fundo Apu Gomes/Folhapres

Los Angeles

Sob o sol forte do início de tarde em Los Angeles, a moradora de rua Julie Cinicieros, 41, se olha pelo retrovisor de um carro estacionado e mostra como faz para injetar heroína diariamente através de uma veia do pescoço.

“A heroína destruiu as veias dos meus braços, então agora preciso injetar pelo pescoço”, explica. Quando o pescoço também se torna inviável, usuários costumam passar para os pés ou para as pernas.

A barraca onde mora, que ela divide com um amigo, está montada em uma calçada do Skid Row, área de 54 quarteirões no centro de Los Angeles que concentra o maior número de sem-teto na cidade. Em pouco mais de 11 km², vivem atualmente 4.757 moradores de rua.

Para muitos, a região, que existe há mais de cem anos, simboliza hoje a crise pela qual passa a Califórnia, com aumento expressivo no número de moradores de rua.

Los Angeles, principal cidade do estado e segunda maior do país, está no epicentro do problema. Ali, o número de sem-teto aumentou 41% desde 2015, segundo dados da Lahsa (Autoridade de Serviços para os Sem-Teto em Los Angeles).

A cidade de 4 milhões de habitantes tem 36,2 mil moradores de rua. Para comparação, São Paulo (com 12,2 milhões de moradores) tinha 20 mil  moradores de rua em 2018, de acordo com a prefeitura.  

Alojada em barracas de camping que tomam as calçadas, boa parte dos moradores do Skid Row sobrevive do auxílio de organizações sociais que atuam na região. Como Julie, a maioria deles é usuária de algum tipo de droga.

Na quarta (18), dia em que a Folha esteve no local, Donald Trump realizava a poucos quilômetros dali um café da manhã de arrecadação de fundos para sua campanha à reeleição. Em sua ida à Califórnia, na terça (16), o presidente abordou a questão do aumento da população de rua.

“Temos pessoas vivendo em nossas melhores estradas, nossas melhores ruas, nossas melhores entradas de prédios, dentro dos quais as pessoas pagam impostos enormes”, afirmou o presidente americano, que tem feito críticas à forma como o problema está sendo abordado por governantes do estado, em sua maioria democratas.

Muitos dos cidadãos pagadores de impostos aos quais Trump se referiu não assistem passivos ao problema. No quarteirão em frente à calçada onde vive, Julie aponta para as pequenas instalações de metal colocadas no muro de uma loja de brinquedos.

“As pessoas costumavam montar suas barracas aqui. Agora, botaram sprinklers [dispositivos que disparam água] ao redor do prédio, que são ligados à noite para que ninguém durma. Em outros lugares, eles mandam os seguranças com mangueiras para jogar água enquanto estamos deitados.”

Em frente a um mapa de Los Angeles pontilhado de tachinhas coloridas —cada uma delas representa um caso de overdose—, Christian Diaz, que atende usuários de drogas em uma clínica de redução de danos na região, conta que novos prédios residenciais e a ação de comerciantes têm mantido os moradores de rua afastados.

Enquanto conversa com a reportagem, é interrompido com frequência por pessoas que vêm buscar kits de prevenção de overdose e trocar seringas usadas por novas. Segundo ele, ali são feitos cerca de 85 atendimentos por dia.

No núcleo do Skid Row, em meio a prédios abandonados, as calçadas são completamente tomadas por barracas e seus moradores. É raro encontrar pedestres que se arrisquem a passar por ali. Até quem dirige evita trafegar pela região.

“Tomem cuidado, não andem por aqui sem um policial”, aconselhou Diane, 39, depois de o fotógrafo que acompanhava a reportagem da Folha ver sua mochila quase ser roubada. Ela vive na região há 19 anos. “É perigoso demais, saiam daqui antes que escureça”.

Para o dinamarquês Peter Hansen, assistente social que veio a Los Angeles para atuar como conselheiro em organizações do Skid Row, o isolamento da região esconde a realidade da população.

“Existe algo fundamentalmente errado com um país que permite que um lugar assim exista. Eu não sentiria a mesma coisa se visse isso na Índia ou na África, onde a pobreza é comum, mas não estamos no terceiro mundo.”

O especialista em serviços públicos da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) Zev Yaroslavsky diz que o fato de donos de lojas estarem expulsando moradores de rua de suas calçadas tem um lado positivo: dá maior visibilidade à questão.

“O assunto só ganhou projeção recentemente porque muitas dessas pessoas se dispersaram pela cidade e se tornaram visíveis em lugares onde antes não eram. Agora todos os bairros da cidade têm problemas com moradores de rua.”

A preocupação tem sido tanta que os moradores aceitaram inclusive mexer no próprio bolso para resolver o problema.

Em 2017, a população aprovou em votação a Medida H, taxa sobre operações comerciais cuja arrecadação vai para o combate à falta de moradia —cerca de US$ 355 milhões anuais (R$ 1,4 bilhão), durante um período de dez anos. Outro projeto, a Proposição HHH, deve destinar US$ 1,2 bilhão à construção de 10 mil unidades residenciais para moradores de rua, também com apoio popular.

Os resultados até agora, no entanto, estão aquém do esperado. Apesar de uma pequena queda na população de rua após a introdução dos projetos, entre 2017 e 2018, o número voltou a crescer em 2019.

Um dos fatores que mais contribuem para o agravamento da crise, de acordo com especialistas, são os altos preços de moradia. Segundo dados do censo americano, em 2013 Los Angeles era a cidade com o aluguel mais oneroso do país —em média, os moradores gastavam 47% de seus salários em despesas com habitação.

Segundo Stephany Campos, administradora-executiva da HHCLA, entidade de apoio à saúde dos moradores de rua, hoje há mais dinheiro do que nunca para lidar com o problema.

“Apesar disso, o público está cada vez menos contente com a forma como as coisas estão sendo administradas. Todos estamos trabalhando muito, mas os números continuam crescendo”, afirma.

No caso de Julie, que usa drogas desde os 11 anos de idade, o vício é o principal empecilho para tentar vaga em uma das habitações oferecidas pelo governo. Estar limpo ou demonstrar perspectiva de melhora são aspectos essenciais na hora da avaliação. “É difícil sair das ruas quando você é viciado. Eu estou nessa situação desde que tenho lembrança.”

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