Ritual religioso muçulmano leva ritmo do Senegal para o centro de SP

Imigrantes se reúnem às segundas-feiras com música tradicional e dança, na praça da República

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São Paulo

À primeira vista, parece uma festa. O som de tambores e de cantos em um idioma estrangeiro ecoam por toda a praça da República.

Cerca de 50 homens com roupas coloridas cantam e dançam. Em alguns momentos, parecem entrar em transe. Quem passa na rua chega perto, observa. Alguns tomam o café que é oferecido a todos em uma garrafa vermelha.

Senegaleses cantam e dançam em ritual de confraria muride, vertente do islamismo, na praça da República, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

Trata-se, na verdade, de um ritual religioso muçulmano —informação que surpreende muitos passantes que param para perguntar. São os seguidores da confraria muride, vertente do islamismo mais comum no Senegal e que é praticada por imigrantes desse país no mundo todo.

Em São Paulo, toda segunda eles se reúnem na praça da região central. “Não é uma festa, uma balada. É louvar, agradecer a Deus, a Alá”, diz o senegalês Ibrahima Pipen Seck, 37.

No Brasil desde 2009, foi ele que teve a ideia de levar o ritual para a rua, há quatro anos. “Se fosse apenas entre nós, poderíamos ficar na mesquita, em um lugar fechado”, afirma.

“A gente sai para mostrar nossa cultura, nossa religião. Não estamos na nossa terra e fazemos de tudo para nos aproximar dos brasileiros.”

O muridismo foi fundado no fim do século 19 pelo xeique Amadou Bamba Mbakke na região central do Senegal. Inserido no sufismo (ramo místico do islã) e baseado na não violência, teve papel importante na resistência à colonização francesa e influenciou a luta pela independência no país. É a vertente religiosa mais praticada no Senegal.

“O xeique era um dos seguidores de Maomé, uma das pessoas que lutaram pela religião muçulmana na África do oeste. É uma luta não com armas, mas com o espírito. Graças a ele, hoje a gente pode sair na rua com a cabeça erguida para praticar a religião muçulmana”, diz Seck, que estima que existam cerca de 600 seguidores em São Paulo.

Os murides se chamam de “baye fall” em homenagem a Ibrahima Fall, discípulo de Bamba. “Baye fall é aquela pessoa que só se liga em Deus e trabalha sem reclamar, imitando o xeique Ibrahima Fall, que era descendente de um rei, mas largou tudo para seguir o xeique Amadou Bamba”, explica Seck.

Eles vestem roupas coloridas tradicionais e usam colares que servem de amuletos. Muitos têm cabelos longos e com dreadlocks —o que faz com que alguns os apelidem de “rastafáris do islã”. As mulheres do muridismo não são obrigadas a cobrir os cabelos.

Os louvores são cantados principalmente em árabe, mas também em wolof, a língua local. Os instrumentos usados são específicos para o culto.

O café é específico da irmandade. Feito com uma especiaria local chamada diar (em wolof), é batizado de “café Touba”, em homenagem à cidade santa da confraria, onde viveu e morreu Ahmadu Bamba e que se tornou destino de milhões de peregrinos.

“No Brasil, se você vai à casa de alguém, a pessoa te oferece refrigerante ou cerveja. Na nossa casa a gente oferece esse café”, afirma Seck.

Na praça da República, a cafeína é mesmo necessária: o ritual se estende das 18h30, quando os instrumentos começam a ser montados, até depois das 22h, quando os participantes se reúnem em uma roda para recados finais.

Para os senegaleses espalhados pelo mundo, praticar o muridismo é uma forma de manter as raízes culturais, algo relevante para uma população com forte tradição migrante. Estima-se que cerca de 5% dos 15 milhões de senegaleses vivem fora do país.

A confraria é também um elo que une seus praticantes em uma rede de apoio mútuo.

“Se alguém perde uma mercadoria na rua [muitos senegaleses trabalham como camelôs], cada um dá um pouco de dinheiro para ele começar de novo. Nosso povo é assim, um ajuda o outro. Por isso estamos aqui”, diz Seck.

“Eles se baseiam em valores como solidariedade e honestidade. São muito organizados e têm uma rede internacional bem constituída”, afirma João Carlos Tedesco, professor da pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo e pesquisador da imigração senegalesa.

“Têm também uma relação forte com o poder político. Dificilmente um candidato ganha a eleição no Senegal se não for da confraria muride.”

Segundo Tedesco, a irmandade incentiva a emigração. “Muitos recebem uma bênção de líderes murides antes de sair. A saída de pessoas é uma grande fonte de renda para o país e para a confraria”, diz. As remessas dos imigrantes são responsáveis por cerca de 14% do PIB do Senegal.

A experiência do xeique Amadou Bamba durante anos no exílio também serve de guia para os murides. “Ele escreveu muito sobre o que é ser um estrangeiro numa terra estranha. Esses escritos são uma referência, uma proteção para as adversidades que imigrantes senegaleses enfrentam.”

“Todos os senegaleses sonham em ir para fora, em conhecer outro país, ajudar a família”, diz Seck, que vende tecidos africanos no Brasil e tem dois filhos nascidos no país.

Ele conta que se surpreendeu com São Paulo ao chegar. “Quem nunca veio acha que aqui só tem criminalidade, guerra entre traficante e polícia, favela. As TVs de lá não mostram os prédios bonitos, as pessoas maravilhosas”, afirma. “Estou feliz aqui.”

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