Adotamos uma linha crítica a Bolsonaro, diz diretora do jornal El País

Para Soledad Gallego-Díaz, investimento na América Latina é essencial para publicação espanhola

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Medellín

​À frente de um dos principais jornais europeus desde junho de 2018, Soledad Gallego-Díaz, 67, considera o jornalismo o “único instrumento capaz de formar cidadãos” e que o ofício nasceu com “vocação progressista, pois seu dever sempre foi acompanhar a transformação das sociedades”. 

Com a chegada de Gallego-Díaz à direção do El País, o jornal retomou de forma mais enfática uma linha editorial de centro-esquerda, depois de alguns anos recebendo críticas por ter se aproximado do Partido Popular (liberal conservador), que governou a Espanha até junho do ano passado.

O El País nasceu em 1976, cinco meses após a morte do ditador Francisco Franco (1936-1975). Foi o jornal que acompanhou a transição espanhola à democracia, e que hoje coloca os olhos no crescimento de sua audiência na América Latina.

Soledad Gallego-Díaz, 67, à frente do El País, um dos principais jornais europeus
Soledad Gallego-Díaz, 67, à frente do El País, um dos principais jornais europeus - Javier Soriano/AFP

No jornal desde o ano de sua fundação, Gallego-Díaz já exerceu diversas funções: colunista, repórter e correspondente em Bruxelas, Paris, Londres, Nova York e Buenos Aires.

Em entrevista à Folha durante o Festival Gabo, em Medellín, a jornalista discorreu sobre jornalismo e as novas eleições na Espanha, marcadas para 10 de novembro.

O El País tem uma estratégia clara de se expandir na América Latina. Por quê? Sempre tivemos atenção com a América Latina. Continuamos a ser um jornal espanhol, que precisa manter a liderança na Espanha, assim como se espera que o Guardian mantenha a liderança no Reino Unido. A ideia de dar ênfase à cobertura de América Latina não é nova, pois figura na declaração de fundação do jornal. Ali, o El País se propõe a ter uma vocação europeia e a vontade de estar presente na América Latina. Era um jornal que circulava apenas em papel e já tinha essa vontade. Agora temos a vantagem de que a versão digital chegue a muito mais leitores no continente americano.

Mas agora é uma estratégia de mercado, há uma Redação muito grande no México, o número de postos em Bogotá, Buenos Aires e São Paulo aumentou. Nós temos 40 milhões de usuários únicos na América Latina, e 35 milhões na Espanha. Ali, de cada cem pessoas que entram na internet, 75 o fazem pelo El País. É muito difícil romper esse teto na Espanha. Por outro lado, as possibilidades são muito maiores na América Latina. Por isso o investimento em mais postos de correspondentes, por isso que o Babelia, nosso suplemento de cultura, traz muitos autores e intelectuais latino-americanos. 

Há outras publicações disputando esse público e tentando ser mais internacionais, como o Washington Post. O que acha disso? A competição nunca é má. A diferença que nos favorece é que a América Latina é parte de nossa maneira de ser, de nossa cultura. Enquanto para eles representa um esforço para construir uma identidade. Para nós, não, pois temos a mesma língua, estamos aqui há mais tempo. A relação entre Espanha e América Latina não é artificial, mas sim histórica. 

E no Brasil? Isso sim é uma estupenda surpresa, e boa. Pois com o Brasil não tínhamos uma tradição de relação intensa como com o resto da região. E na internet a operação do El País no Brasil tem muito sucesso, muitos leitores, sem pretender competir com os jornais locais. Estamos adotando uma linha muito crítica ao presidente Bolsonaro, num momento em que isso é necessário.

A sua chegada à direção do jornal representa uma reconciliação com seu público tradicional, de centro-esquerda? Sim. Mas não creio que o El País se defina por um diretor que chega e outro que vai. Somos centenas de jornalistas que passaram pelo jornal ao longo desses 40 anos. E, no geral, nunca deixamos de ser um jornal com uma cultura determinada, com um papel determinado, o de defender as instituições democráticas, não queremos nenhum país vivendo em ditadura. As instituições democráticas são o esqueleto do jornal, nascemos com esse propósito. Além disso, não vejo como fazer jornalismo de outro modo, porque o jornalismo nasceu com uma visão progressista da sociedade. Não queremos sociedades estáticas. As sociedades são móveis, e nós, como meios de comunicação, temos de acompanhar as mudanças e ajudar a interpretá-las.

Mas sente que houve uma guinada para o centro nos últimos anos? Pode ser. Mas nós nunca fomos conservadores e nunca tivemos uma posição ideológica partidária. Temos uma visão aberta e progressista da sociedade, tanto que defendemos o aborto antes que muitos outros meios, nos anos 1980. E como ser um jornal progressista e estrangeiro numa América Latina tão complexa? Nossa ideia, tanto no Brasil quanto na Venezuela, é defender a institucionalidade democrática. Seja em países governados pela esquerda ou pela direita. 

Como vê a situação da Espanha às vésperas de mais uma eleição? Estamos numa situação muito ruim porque o crescimento econômico está estagnando-se em toda a Europa. E, na Espanha, ainda que tenhamos nos recuperado um pouco da crise que se iniciou em 2007, essa recuperação não chegou a todos. Há um setor da população que não sentiu nenhuma melhora, e a degradação do trabalho é um aspecto que nos preocupa de modo especial. Muitos espanhóis vivem hoje na precariedade trabalhista, sem contrato, com idas e vindas, com menos horas e menos proteção. Não estamos esperando que seja possível conter as transformações no mundo do trabalho, porém defendemos que é preciso encontrar uma maneira de que esse novo modelo de trabalho assegure a proteção dos trabalhadores.

Sente que o atual governo [de centro-esquerda] não tem essa preocupação na agenda? Sim, é um governo comprometido com essa causa, mas sem capacidade de colocar em marcha suas ideias porque não tem maioria no Parlamento. E não creio que passará a ter agora, depois dessas eleições.

É hora de uma reforma política do sistema espanhol? Desde que se passou a ter cinco grandes partidos, em vez de dois, parece não haver maneira de encontrar um acordo. Não creio que tenhamos que fazer uma reforma política. Não acreditamos que o pluralismo partidário seja algo ruim. Não deveria haver diferença entre ter dois ou cinco grandes partidos. O que queremos é que a Constituição seja respeitada. E a Constituição espanhola se baseia no parlamentarismo. Não está baseada em depositar todo o poder numa pessoa, num premiê, e sim no parlamento. Se elegemos os deputados, temos que supor que eles sejam capazes de chegar a um acordo para eleger um primeiro-ministro para governar.

As eleições travam as reformas no jornal? Sim, claro, porque consomem muita energia. Todo o tempo e investimento que queremos fazer em inovações e experimentos temos de deixar de fazer porque a energia tem de estar colocada na cobertura das agendas das eleições.

Como está a redação do jornal hoje? Quando cheguei, as operações de digital e impresso estavam separadas. Eu as juntei e acredito que dessa forma funcionamos melhor. Porque os novos tempos geram desafios tão grandes que exigem redações coesas e que levem a alma do jornal como prioridade. Neste momento creio que esse modelo é melhor.

Seu antecessor, Antonio Caño, deu uma declaração polêmica quando disse que o El País seria publicado em papel enquanto fosse possível. A sra. vê o fim do papel? Não, não vejo. Temos de esquecer a ideia de um retorno das grandes tiragens. Isso é impossível, isso é passado. Mas sempre haverá o leitor do papel, ainda que em menor número. E há que se cuidar do papel, fazer um produto sofisticado e diferente da internet, porque há público, ainda que menor. Mas o futuro do jornalismo vai em outra direção. O futuro é digital e temos de encontrar maneiras de financiá-lo. O El País passará a ter paywall, e seguiremos buscando outras opções de financiamento.

A sra. não está no Twitter nem no Facebook. Não acha importante para se informar? Não. Me informo de diversas maneiras, alertas, newsletters, as próprias páginas digitais dos jornais que leio. As redes sociais servem apenas para que as pessoas se expressem de forma rápida. E vivemos numa época em que vale a pena pensar um pouco antes de reagir. Creio que, se eu me expressar rapidamente sobre qualquer coisa, eu mesma desconfiarei de mim. Não custa nada refletir um pouco antes de postar o que for.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.