Brasileiros deportados dos EUA relatam comida estragada em detenção

Pegos na fronteira, eles ficaram presos por 20 dias sem contato com familiares

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Confins (MG)

Homens, mulheres e crianças, muitos sem sapatos, carregando sacos plásticos pequenos apenas com celulares e passaportes, cruzaram a porta do desembarque internacional do aeroporto de Confins (MG), pouco antes das 3h do sábado (26).

Presos atravessando a fronteira entre México e Estados Unidos, nas cidades de Ciudad Juárez e El Paso, eles foram deportados em voo fretado pelo governo de Donald Trump, segundo a Polícia Federal. 

Brasileiros deportados dos EUA encontram familiares
Brasileiros deportados dos EUA encontram familiares no aeroporto de Confins, próximo a Belo Horizonte (MG) - Alexandre Rezende - 26.out.19/Folhapress

A maioria dos ouvidos pela Folha estava havia cerca de 20 dias detida no Texas. 

Segundo a Polícia Federal, dos 70 deportados, 32 são menores de idade e 59 são de Minas Gerais —entre eles, há um homem de 48 anos condenado por homicídio qualificado cometido em Governador Valadares (MG) em 2000.

O Itamaraty afirma que são 51 deportados. 

Em comunicado, o CBP (Proteção de Fronteira e Alfândega, na sigla em inglês) e a ICE (alfândega e imigração), informam outros números: seriam 66 integrantes de 24 famílias e um homem que estava só.

Os brasileiros contam que foram mantidos em tendas, que tinham entre 200 e 400 pessoas, dormiam no chão ou em colchões finos, recebiam comida estragada e em quantidades pequenas, usavam banheiros químicos e passavam até oito dias sem banho.

“Queria tentar uma vida melhor para o meu filho, mas você é tratado igual cachorro. Criança dormindo no chão, sem comer? É melhor que nos deportaram, aqui nunca passei fome”, diz Magno Bruno, 32, que passou seis dias no local com o filho Caio, 13.

Apesar de terem sido presos em datas diferentes, os brasileiros contam histórias parecidas da chegada à fronteira. Todos viajaram de avião do Brasil ao México —país que dispensa visto aos brasileiros por 180 dias— e com um contato indicado por algum conhecido. Depois de desembarcarem na Cidade do México, seguiram em outro voo para Chihuahua e foram de ônibus até Ciudad Juárez.

Como as travessias aconteciam de madrugada, eles contam que policiais apareceram com lanternas e os ajudaram a chegar ao lado americano. Lá, depois de passarem pela polícia, foram levados ao local onde ficaram detidos.

No site oficial, a CBP, responsável pelas fronteiras, informa que em 2019 houve um recorde de detenções de famílias na fronteira sul dos EUA: 473.683. Ao todo, foram detidos 851.508 imigrantes.

A rotina descrita pelos brasileiros começava por volta das 5h, quando eram acordados pelos agentes. Às 6h, era servida a primeira refeição do dia, um burrito (uma espécie de pão enrolado, típico do México) recheado com ovo e feijão.

Às 12h, recebiam outro burrito com recheio de frango. No fim da tarde, vinha a última refeição do dia: sanduíche de peito de peru.

Segundo eles, a comida costumava estar azeda, e várias pessoas encontraram partes de baratas, cabelos e prazo de validade vencido. 

Guardar comida para comer em outros horários era proibido. “O que mais me doeu lá dentro foi ele me pedir comida”, conta Lilian Aparecida, 37, olhando para o filho de três anos. Além dele, foram deportados com ela o marido e a filha de dez anos.

Havia ordens para que todos se mantivessem sentados ou deitados. As crianças também tinham restrições para brincar. Um dia, segundo uma das brasileiras, elas juntaram canudos que vinham com o suco e improvisaram um jogo de varetas. Um agente jogou o material no lixo. 

As agências afirmam que seguem um manual de práticas da CBP de outubro de 2015 —editado no governo de Barack Obama, ele segue valendo com o governo Donald Trump.

O Itamaraty informou que “não foram verificados maus-tratos ou abusos de qualquer natureza” e que as autoridades consulares brasileiras acompanham casos de brasileiros detidos por irregularidades de migração, “atuando para apoiar esses nacionais, nos limites impostos pela legislação e soberania dos 
Estados Unidos”. 

A maioria dos que tentam entrar nos EUA sem visto vem de México, El Salvador, Guatemala, e Honduras. Os brasileiros que desembarcaram no aeroporto de Confins no sábado, contaram à Folha que, ainda que sua situação fosse precária, o tratamento reservado a imigrantes da América Central era pior. ​

Segundo o Instituto Migration Policy, o atual governo limitou o acesso ao sistema de pedido de asilo e está enviando mais de 50 mil imigrantes ao México para aguardar audiências judiciais que avaliarão sua situação.

A diretora de comunicação da organização, Michelle Mittelstadt, explica ainda que o número de brasileiros pegos na fronteira é pequeno perto do total de migrantes enviados aos centros de detenção. 

“Há muitas reclamações, de grupos de direitos civis e outros, de que as condições de migrantes detidos nos EUA são muito inadequadas, e no início do ano, houve um clamor maior com denúncias de que crianças eram mantidas em estações da Patrulha de Fronteira por dias, semanas, em locais superlotados, sem acesso a coisas básicas como escova de dentes e sabão”, diz ela.

Outra mulher, que também não quer ter o nome revelado, foi deportada com os filhos de 14 e 16 anos. O marido dela vive nos Estados Unidos com dois filhos do casal, de dez e cinco anos. Os três têm Green Card, documento de residência para estrangeiros, e a família iria se reencontrar após um ano. “Eu tentei [tirar] visto duas vezes, meus filhos precisam de mim”, conta.

Enquanto conversava com a reportagem, ela abria o WhatsApp e dezenas de mensagens surgiam na tela, vindas do marido e de outros familiares, à espera de sinal no telefone por mais de 20 dias. Telefonemas não eram permitidos no período em que eles foram mantidos no centro de detenção.

A ICE afirmou que a deportação do grupo foi realizada “devido ao grande número de casos”.

“O Departamento de Segurança Nacional está comprometido em reduzir o tempo que estrangeiros permanecem sob sua custódia e desencoraja indivíduos, especialmente unidades familiares, de tomar jornadas muitas vezes perigosas aos EUA com a falsa pretensão de que poderão ficar no país”, afirmou o órgão.

A embaixada dos Estados Unidos em Brasília disse, em nota, que “facilitar a remoção de estrangeiros, sujeitos a uma ordem final de remoção, especialmente aqueles que oferecem perigo à segurança nacional ou pública, é uma prioridade do governo”.  

A lista de pessoas deportadas não foi divulgada, e grande parte das famílias só foi informada do que havia acontecido depois do desembarque em Confins. Várias pessoas ouvidas pela reportagem relataram que, na segunda-feira (21), um homem que se apresentou como representante do governo brasileiro os entrevistou, avisou que eles estavam em uma lista de deportação, perguntou sobre as condições do local de detenção e disse que voltaria a contatá-los. 

O Itamaraty confirmou a visita do Consulado-Geral do Brasil em Houston aos brasileiros detidos e diz que foram feitos “contatos e gestões junto às autoridades norte-americanas competentes”. 

Os brasileiros contam que, no dia da viagem, foram acordados por volta das 3h30 e encaminhados para um ônibus com grades. De lá, subiram em um avião. A maioria diz que não sabia para onde estava sendo levada.

Michelle conta que o governo americano tem divulgado que acabou com a prática conhecida como “pegar e largar” (catch and release), termo usado quando imigrantes eram detidos na fronteira, mas podiam ficar no país e defender seu caso diante de uma corte de imigração —às vezes, isso podia levar três anos.

Mesmo que pareça difícil que a prática tinha sido completamente deixada pelo governo, diz ela, “mais adultos e famílias estão sendo detidos, e o governo está testando audiências de imigração ainda mais rápidas na fronteira, deportando em seguida aqueles que eles acham que não tem razão legítima para ficar”.

A PF informou que tomará depoimentos dos deportados para investigar um esquema de imigração ilegal. Para a polícia, “imigrantes teriam se valido de crianças e adolescentes para facilitar a entrada e a permanência em território americano”.

A corporação também citou duas operações, realizadas entre agosto e outubro, visando combater falsificação de documentos públicos para tentar vincular crianças e adolescentes a adultos sem nenhum parentesco, “com o único objetivo de usar esses falsos filhos como um escudo contra a deportação”. A corporação não respondeu se algum dos deportados foi identificado incorrendo na prática.

Uma das brasileiras ouvidas pela Folha no aeroporto conta que foi colhido DNA dela e da filha de 7 anos para comprovar o parentesco entre elas, nos EUA. A decisão de tentar viver no país surgiu pelas dívidas da família no Brasil e ameaças. Ela pediu para não ser identificada. 

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