'Indígena nunca trata mal outro irmão', diz líder de marcha contra Evo na Bolívia

Adolfo Chávez voltou ao país em fevereiro depois de autoexílio de quatro anos

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Brasília e Terra Indígena Takana II (Amazônia boliviana)

Um dos principais líderes indígenas da Bolívia, o takana Adolfo Chávez, 48, organizou uma longa marcha que culminou em um protesto, em 2011, contra a construção de uma rodovia no coração da Amazônia boliviana. A partir daí, tornou-se um desafeto do presidente Evo Morales, para quem Chávez havia feito campanha eleitoral, em 2005.

Com chapéu, indígena toca flauta durante caminhada
Adolfo Chávez toca uma flauta numa marcha de indígenas em San José, na Bolívia - David Mercado - 27.set.2019/REUTERS

O takana acabou preso e depois se autoexilou por quatro anos em países da América Latina, deixando a mulher e quatro filhos na Bolívia. Apenas em fevereiro passado decidiu regressar ao seu país, mas ainda teme ser preso. A obra, uma das prioridades do presidente Evo Morales, utilizaria recursos do BNDES e tinha o apoio do ex-presidente Lula. Abandonada na época, ela voltou a ser feita e agora está prestes a entrar no território indígena.

“Nasci em março de 1971 em Tumupasa, que no meu idioma significa 'terra branca', no Departamento de La Paz. Minha mãe Dolores emigrou e se capacitou enfermeira num centro de estudos linguísticos de Beni. Lá desenvolvi meu estudo básico primário. Tive uma preparação muito distinta de meus irmãos takanas. Eu jovem estudei em Riberalta, que tem uma grande população.

Minha mãe morreu quando eu tinha 15 anos, uma pneumonia rápida. Devia ter 38, 40 anos. Antes de morrer, ela me encarregou de voltar à minha terra natal para conhecer meus primos, meus tios, mas nunca me disse que eu tinha vindo de uma família indígena. Eu primeiro fui viver com meu pai e quatro irmãos. Com 15 anos, deixei o colégio e entrei no quartel. Estudei teologia na fronteira com o Brasil.
 

Aos 19, 20 anos, fui viver com meu avô e o povo indígena takana. Lá soube que empresas estavam querendo passar uma estrada sobre a nossa terra. Empresários de Santa Cruz estavam acercando-se da nossa terra para [extrair] madeira. Eles enganavam nossos irmãos porque compravam, vamos dizer, a R$ 20 reais, quando poderia valer uns US$ 3 mil. 

Decidimos: 'Ninguém mais vai vender madeira e queremos que nos respeitem'. Minha primeira ação foi por volta de 1995, entrei com meus irmãos takanas com flechas e lanças, armas, escopetas, e expulsamos uma empresa.

Eu era jovem e estava com toda a energia. Um dia me disseram: 'queremos que nosso irmão Pantchin (era o sobrenome do meu pai) seja encarregado da secretaria de terras e territórios dos takanas'. Em 1997 eu assumi essa responsabilidade numa organização indígena, a Central de Paz Indígenas de La Paz.

Conheci Evo Morales quando nós começamos a fazer campanha para ele por volta de 2005. Havia uma crise política no país. Em 2003, todos os bolivianos resolveram derrubar [o então presidente] Sánchez de Lozada porque ele tinha um plano para passar um gasoduto e vender aos Estados Unidos.

Nós estávamos imersos nesse movimento de contestação. E não havia mais líderes políticos na Bolívia. Nossa organização disse: 'Não vamos fazer parte de partidos políticos, vamos assumir a liderança da Bolívia'. Todos trabalhamos para Evo. Ele ganhou. Nós fizemos nossa assembleia e 34 povos indígenas decidiram me eleger presidente dessa organização.

Quando Evo foi presidente, no primeiro mandato, eu conversava com ele como estou aqui conversando contigo. Ele me convidou várias vezes para fazer parte do gabinete, para ser embaixador, e eu rechacei porque me sinto melhor atuando no movimento indígena.

Mas quando vimos que as leis estavam saindo contra a própria Constituição, nós não podíamos ser cúmplices de desrespeito ao nosso direito. O principal foi quando ele quis passar a estrada sobre a Tipnis [Terra Indígena e Parque Nacional Isiboro-Secure, área protegida desde 1965], em 2011. Eram 70 km sobre um lugar virgem, de florestas. Os indígenas disseram: 'a estrada para nós é o rio, não queremos essa estrada'.

Nos mobilizamos e partimos, em 15 de agosto de 2011, para frear a estrada. Dissemos aos engenheiros brasileiros [da OAS]: 'Vocês estudaram seis, sete anos, mas vocês vão morrer aqui nesta terra indígena'. Eles se mandaram.

Começamos uma marcha para barrar a rodovia.  Foram mais de 600 km caminhando, passamos por toda a Amazônia até chegar à sede do governo. No começo éramos umas 400 pessoas, quando acabou eram mais de 20 mil. O erro de Evo Morales foi que, a cada momento que avançávamos a marcha, a polícia tentava impedir.

Nossas mobilizações fazemos com os velhinhos, as crianças, cachorro, gato. Ele disse: 'Vocês estão atingindo minha imagem, índios marchando contra outro índio!' Foi aí que ele interveio em uma marcha pacífica, em 24 de setembro, mandou o Exército e a Polícia e houve muitos feridos.

Chegamos à sede do governo em outubro de 2011. Foram dois meses e seis dias de marcha. Ficamos acampados na frente do palácio. Depois de três dias, Evo mandou seu ministro dizer que queria dialogar.

Aí saiu uma lei reconhecendo que nenhuma empresa pode entrar em terra indígena sem uma autorização da comunidade. Aí eles não podiam mais construir a rodovia. 
 

Em 2012, o governo entrou nas comunidades com motores de barco para presentes, começou a nos dividir. Era como um suborno. 

Quando terminou 2012, houve uma divisão do movimento indígena porque o governo entrou no escritório da CIDOB [maior ONG indígena boliviana], em Santa Cruz. Ele disse que a nova presidente indígena era uma mulher, e a colocou no cargo. Foi uma intervenção, preferimos nos retirar.

Em 2013, nós fizemos a marcha porque se vão dividir um território, vão dividir todos os outros territórios. A luta de um é a luta de todos.
 

Eu saí candidato a presidente da CIDOB e ganhei com uns 70% de votos. Eles se assustaram.

Eles viram que a única forma de dar conta de mim era me prendendo, Me acusaram de ter “projeto fantasma”. Fui solto e continuei meu trabalho informando as comunidades, já estávamos divididos. Fui convidado pela França, em 2015, em uma conferência de mudanças climáticas, para fazer uma exposição sobre a rodovia. Nesse momento o governo disse que eu deveria ter me apresentado numa outra audiência, e a Justiça determinou minha apreensão imediata, como 'rebelde'. 

Assim minha passagem de volta foi para Lima e depois Puerto Maldonado [Peru]. Foi muito duro manter-me à margem do meu povo, do meu país. Quatro anos fora. Morei no Brasil, no Equador. No começo deste ano [fevereiro 2019], eu decidi voltar. Se me querem prender, que me prendam de uma vez.

Agora sou coordenador de relações internacionais e cooperação da Coica. Vivo em Quito e minha família ficou em Santa Cruz.
 

Evo retomou o projeto da mesma rodovia, está no limite da terra indígena, faltando uns 20 km. Há uma parte dos indígenas que resiste, não quer, mas ele está usando presentes para alguns líderes, dando víveres, gasolina.

Não falei mais com Evo. Entendo que quando ele interveio na marcha, já não era mais o nosso presidente. Porque um irmão indígena nunca trata mal outro irmão.

A Folha viajou a convite da Burness Communications

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