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O mundo condena a guerra de Erdogan contra os curdos, mas a Turquia aplaude

Presidente turco é criticado por invasão ao norte da Síria para tentar expulsar curdos da região

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Patrick Kingsley
Istambul | The New York Times

Uma onda de novas sanções impostas pelos EUA. Um embargo europeu às vendas de armas ao país. O indiciamento de um banco estatal turco. Ameaças de isolar a Turquia na Otan. Aumento da solidariedade internacional pela causa dos curdos. E o retorno do exército sírio ao norte da Síria.

Os problemas se acumulam para o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, cuja invasão do norte da Síria, sob domínio curdo, na semana passada, fez desandar as relações turcas já tensas com seus parceiros americanos e europeus e transformou radicalmente as alianças e linhas de frente da guerra na Síria, que já dura oito anos.

O presidente turco Recep Tayyip Erdogan, em discurso em Istambul - Presidência da Turquia/AFP

Entretanto, por mais que a situação de Erdogan possa parecer complicada quando vista de fora, analistas dizem que é provável que apenas reforce sua posição em seu país, na medida em que os combates intensificam um sentimento nacionalista já inflamado.

As dificuldades enfrentadas por Erdogan também mascaram o fato de o presidente estar quase realizando um de seus objetivos mais importantes de política externa: romper o domínio de uma milícia curda hostil sobre um trecho extenso da fronteira e fraturar a aliança dos EUA com um grupo que Erdogan encara como uma ameaça existencial ao Estado turco.

Diante de tudo isso, ficou mais difícil para a oposição unir-se contra Erdogan ou sequer criticá-lo. Ao mesmo tempo, os fatos recentes reforçaram a narrativa do presidente segundo a qual ele e a Turquia são vítimas de uma conspiração internacional.

“Americanos, europeus, chineses, árabes –todos unidos contra a Turquia”, bradou na quarta-feira a primeira página do Soczu, jornal que normalmente faz oposição acirrada ao presidente. “Que venham!”

Nas últimas semanas a seleção nacional de futebol da Turquia vem exprimindo seu apoio à campanha de Erdogan, com os atletas fazendo saudações militares no início de duas partidas internacionais. Cantores pop expressaram apoio ao presidente nas redes sociais. Até mesmo o diretor da maior feira de arte do país enviou e-mail aos nomes de sua lista de contatos internacionais para condenar a “propaganda negra” da cobertura que a mídia internacional está fazendo da operação militar.

“Esta operação foi um sucesso, no geral”, comentou o analista Ozgur Unluhisarcikli, diretor do escritório em Ancara do instituto de pesquisas German Marshall Fund, sediado em Washington.

A Turquia se opõe há muito tempo à influência de uma milícia curda síria conhecida pelas suas iniciais YPG (Unidade de Proteção Popular), pelo fato de ser uma filial de um movimento guerrilheiro que há décadas trava uma insurgência contra o Estado turco. As autoridades turcas ficaram alarmadas em 2012 quando a YPG assumiu controle de bolsões do norte da Síria, após um recuo das forças governamentais sírias em meio ao caos da guerra civil nesse país.

Ancara se assustou especialmente quando a milícia ampliou seu controle, aliando-se às forças dos EUA para expulsar a organização Estado Islâmico da região da fronteira.

Para a fúria dos turcos, os Estados Unidos protegeram a YPG por quase meia década, incentivando a organização a deixar sua identidade menos evidente, mudando seu nome e recrutando mais combatentes não curdos.

Mas essa paz delicada foi estilhaçada na semana passada quando o presidente Donald Trump ordenou a retirada das tropas americanas da fronteira entre a Turquia e a Síria. Isso permitiu às forças turcas invadirem a Síria, levaram as forças terrestres americanas e seus aliados internacionais a abandonarem suas bases na área e forçaram os curdos a pedir proteção às forças russas e às tropas do governo sírio.

A intervenção da Rússia na Síria se deu muito mais rapidamente do que o previsto e provavelmente vai impedir Erdogan de criar uma grande zona de proteção ao longo da fronteira, como ele esperava fazer. Mesmo assim, ela o leva muito mais perto de alcançar seu objetivo primário, disse Unluhisarcikli.

“Qual é o objetivo da Turquia? É impedir o YPG de controlar território no nordeste da Síria”, disse o analista. “Quer seja a Turquia ou o regime sírio que o faça, o controle do YPG terá sido enfraquecido.”

Houve época em que Erdogan chegou a ter a esperança de derrubar Bashar al-Assad, mas hoje ele parece encarar o presidente sírio como um mal menor, comparado à milícia curda. Na quarta-feira (16) Erdogan disse a jornalistas que poderia aceitar que o regime de Assad voltasse a entrar na cidade de Manbij, antes controlada pelos curdos, desde que expulsasse os combatentes curdos da área.

“Não temos grande interesse em estar em Manbij”, disse Erdogan. “Temos uma preocupação apenas: queremos que ou a Rússia ou o regime sírio tirem o YPG de lá.”

Erdogan recomendou aos combatentes curdos que lutam contra suas tropas no nordeste da Síria que deponham suas armas e se afastem da região da fronteira.

Nos anos 1980 e 1990 o predecessor e pai de Bashar al-Assad, Hafez Assad, deu aos guerrilheiros curdos que combatiam o Estado turco refúgio seguro e espaço para se organizarem na Síria. Erdogan talvez tema um resultado semelhante hoje.

Mas Bashar al- Assad já prometeu várias vezes restabelecer o controle do regime sobre cada centímetro de seu país, e poucos creem que ele vá permitir que os curdos sírios conservem seu nível atual de autonomia.

A política doméstica autoritária de Erdogan é criticada e provoca mal-estar internacional há anos, mas a invasão das áreas sírias sob controle curdo suscitou um nível incomum de reprovação, mesmo pelos padrões de Erdogan.

Esta semana Trump elevou as tarifas comerciais sobre o aço turco, cancelou negociações sobre um novo acordo comercial de US$ 100 bilhões com a Turquia e impôs sanções financeiras a três ministros turcos.

“Estou preparado para destruir a economia turca rapidamente se os líderes turcos continuarem a seguir este caminho perigoso e destrutivo”, ele disse em comunicado na segunda-feira.

Mas, apesar de a economia turca já estar cambaleando, algumas dessas medidas podem acabar tendo efeito menor do que aparentam.

“Talvez as pessoas encontrem maneiras criativas de excluir” a Turquia da Otan, disse Amanda Sloat, ex-funcionária do Departamento de Estado encarregada das relações com a Turquia. “Mas os documentos de fundação da Otan não contêm orientações sobre a remoção de um membro da Otan.”

E, embora a crise econômica crie desafios às perspectivas eleitorais de Erdogan no longo prazo, o presidente turco já utilizou ameaças econômicas no passado para elevar sua popularidade no curto prazo, retratando-se como o único baluarte viável do país contra um mar de problemas vindos de fora.

Assim, a guerra aumentou a dificuldade de líderes oposicionistas em criticar Erdogan, sob pena de serem acusados de falta de patriotismo.

Mesmo Ekrem Imamoglu, político oposicionista que derrotou o candidato apoiado por Erdogan nas eleições recentes para a prefeitura de Istambul e é visto como futuro rival de Erdogan à Presidência, está tomando o cuidado de manifestar apoio à invasão. Em uma série de posts no Twitter, ele descreveu os membros da milícia curda como “um grupo terrorista traiçoeiro” e disse que reza pelo êxito da operação.

Tradução de Clara Allain

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