Descrição de chapéu The New York Times

Arquivos vazados mostram detenções em massa de minorias étnicas na China

Mais de 400 páginas de documentos descrevem repressão a minorias muçulmanas em Xinjiang

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Hong Kong | The New York Times

Os estudantes reservaram suas passagens para casa no final do semestre, esperando uma pausa relaxante após os exames e um verão de encontros felizes no extremo oeste da China.

Em vez disso, eles seriam informados de que seus parentes e vizinhos estavam desaparecidos —todos presos em uma rede cada vez maior de campos de detenção construídos para abrigar minorias étnicas muçulmanas.

As autoridades da região de Xinjiang temiam que a situação fosse um barril de pólvora. E se prepararam de acordo.

A liderança distribuiu uma diretriz secreta aconselhando as autoridades locais a encurralar os estudantes que retornavam assim que chegassem, e a mantê-los calados.

Ela incluía um guia sobre como lidar com as perguntas deles, começando pela mais óbvia: onde está minha família?

"Eles estão em uma escola de treinamento criada pelo governo", começava a resposta prescrita.

Se pressionadas, as autoridades deviam dizer aos alunos que seus parentes não eram criminosos —mas não podiam sair dessas "escolas".

Fachada do campo de detenção de minoria étnica uigur em Hotan, na província chinesa de Xinjiang
Campo de detenção para minoria étnica uigur em Hotan, na província chinesa de Xinjiang - Gilles Sabrié/The New York Times

O roteiro de perguntas e respostas também incluía uma ameaça quase invisível: os alunos deveriam ser informados de que seu comportamento poderia reduzir ou prolongar a detenção de seus parentes.

A diretriz estava entre 403 páginas de documentos internos que foram compartilhados com The New York Times em um dos mais importantes vazamentos de documentos do governo do Partido Comunista da China em décadas.

Eles oferecem uma visão interna sem precedentes da constante repressão em Xinjiang, onde as autoridades prenderam até 1 milhão de uigures, cazaques e pessoas de outras etnias em campos de concentração e prisões nos últimos três anos.

O partido rejeitou as críticas internacionais aos campos e os descreveu como centros de treinamento para o emprego, que usam métodos moderados para combater o extremismo islâmico.

Mas os documentos confirmam a natureza coercitiva da repressão.

As principais revelações dos documentos incluem:

  • O dirigente Xi Jinping, chefe do partido, lançou as bases para a repressão em uma série de discursos proferidos em privado a autoridades durante e após uma visita a Xinjiang em abril de 2014, algumas semanas depois que militantes uigures esfaquearam mais de 150 pessoas em uma estação de trem, matando 31.
  • Os ataques terroristas no exterior e a retirada de tropas americanas do Afeganistão aumentaram os temores da liderança e ajudaram a moldar a repressão.
  • Os campos de internação em Xinjiang se expandiram rapidamente após a nomeação em agosto de 2016 de Chen Quanguo, um novo e zeloso chefe do partido na região.
  • A repressão encontrou dúvidas e resistência de autoridades locais que temiam que exacerbasse as tensões étnicas e sufocasse o crescimento econômico. Chen respondeu expurgando funcionários suspeitos de se interpor em seu caminho.
  •  Os papéis vazados consistem em 24 documentos. Eles incluem quase 200 páginas de discursos internos de Xi e outros líderes e mais de 150 páginas de diretrizes e relatórios sobre a vigilância e o controle da população uigur em Xinjiang. Há também referências a planos para estender as restrições ao islamismo a outras partes da China.

Embora não esteja claro como os documentos foram reunidos e selecionados, o vazamento sugere maior descontentamento interno no partido do que se supunha.

Os documentos foram trazidos à luz por um membro do establishment político chinês que pediu anonimato e expressou esperança de que sua divulgação impeça os líderes partidários, incluindo Xi, de escapar da culpabilidade pelas detenções em massa.

A liderança chinesa cerca de segredo a elaboração de políticas, especialmente quando se trata de Xinjiang, território rico em recursos naturais localizado na fronteira sensível com o Paquistão, o Afeganistão e a Ásia Central.

Grupos minoritários étnicos predominantemente muçulmanos compõem mais da metade da população da região, de 25 milhões. O maior desses grupos é o dos uigures, que há muito tempo enfrentam discriminação e restrições a atividades culturais e religiosas.

Pequim tem procurado há décadas suprimir a resistência uigur à dominação chinesa em Xinjiang.

A repressão atual começou após uma onda de violência antigovernamental e antichinesa, incluindo distúrbios étnicos em 2009 em Urumqi, a capital regional, e um ataque em maio de 2014 a uma feira livre que matou 39 pessoas poucos dias antes de Xi convocar uma conferência da liderança em Pequim para estabelecer um novo rumo de políticas para Xinjiang.

Desde 2017, as autoridades de Xinjiang detiveram centenas de milhares de uigures, cazaques e outros muçulmanos em campos de concentração. Os presos são submetidos a meses ou anos de doutrinação e interrogatório, com o objetivo de transformá-los em apoiadores seculares e leais do partido.

O governo envia os jovens uigures mais brilhantes de Xinjiang para universidades em toda a China, com o objetivo de treinar uma nova geração de funcionários e professores uigures leais ao partido.

A repressão em Xinjiang foi tão extensa que afetou até esses estudantes de elite, segundo mostra a diretriz. Isso deixou as autoridades nervosas.

"Estudantes que retornam de outras partes da China têm amplos laços sociais por todo o país", observou a diretriz. "No momento em que eles emitem opiniões incorretas no WeChat, Weibo e outras redes sociais, o impacto é generalizado e difícil de erradicar."

O documento alertava que havia uma "séria possibilidade" de que os alunos mergulhassem em "tumulto" depois de saber o que havia acontecido com seus parentes. Recomendou que policiais à paisana e oficiais locais experientes os encontrassem assim que retornassem.

O guia de perguntas e respostas da diretriz começa delicadamente, com as autoridades aconselhadas a dizer aos alunos que "não precisam se preocupar absolutamente" com os parentes que desapareceram.

"A taxa de matrícula para o período de estudo é gratuita, assim como os custos de alimentação e despesas", disseram as autoridades.

"Se você quiser vê-los", concluía uma resposta, "podemos organizar uma reunião em vídeo."

As autoridades previram, no entanto, que isso dificilmente acalmaria os alunos e forneceram respostas a outras perguntas: quando meus parentes serão libertados? Se isso é para treinamento, por que eles não podem voltar para casa? Eles podem solicitar uma licença? Como vou pagar a escola se meus pais estão estudando e não há ninguém para trabalhar na fazenda?

O guia recomendou respostas cada vez mais firmes, informando aos alunos que seus parentes haviam sido "infectados" pelo "vírus" do radicalismo islâmico e tiveram de ser postos em quarentena e curados.

Clientes jantam sob cartazes citando Xi Jinping, em que está escrito "todo grupo étnico deve se unir firmemente como as sementes de uma romã" em restaurante em Yarkand
Clientes jantam sob cartazes citando Xi Jinping, em que está escrito "todo grupo étnico deve se unir firmemente como as sementes de uma romã" em restaurante em Yarkand - Gilles Sabrié/The New York Times

Os estudantes deveriam agradecer às autoridades por terem levado seus parentes, segundo o documento.

As autoridades parecem estar usando um sistema de pontuação para determinar quem pode ser libertado dos campos.

O documento instruía os funcionários a dizer aos alunos que seu comportamento poderia prejudicar a pontuação de seus parentes e para avaliarem o comportamento dos alunos e registrar sua participação em sessões de treinamento, reuniões e outras atividades.

"Os membros da família, incluindo você, devem cumprir as leis e regras do Estado e não acreditar ou espalhar boatos", as autoridades eram instruídas a dizer.

"Somente então você poderá adicionar pontos ao seu familiar e, após um período de avaliação, ele poderá deixar a escola se cumprir os critérios de conclusão do curso."

Se questionadas sobre o impacto das detenções nas finanças da família, as autoridades foram aconselhadas a garantir aos alunos que "o partido e o governo farão todo o possível para aliviar suas dificuldades".

A frase que mais se destaca no script, entretanto, talvez seja a resposta modelo para os alunos que perguntam sobre seus parentes detidos: "Eles cometeram um crime?".

O documento instruía as autoridades a afirmar que não. "É só que o pensamento deles foi infectado por ideias prejudiciais", dizia o script.

"A liberdade só é possível quando esse 'vírus' em seu pensamento estiver erradicado e eles estiverem com boa saúde."

Discursos secretos

As ideias que impulsionam as detenções em massa remontam à primeira e única visita de Xi Jinping a Xinjiang como líder da China, um passeio obscurecido pela violência.

Em 2014, pouco mais de um ano após se tornar o líder chinês, Xi passou quatro dias na região e, no último dia da viagem, dois militantes uigures realizaram um atentado suicida diante de uma estação de trem em Urumqi que feriu quase 80 pessoas, uma delas fatalmente.

Semanas antes, militantes com facas fizeram ataques em outra estação ferroviária, no sudoeste da China, matando 31 pessoas e ferindo mais de 140.

E menos de um mês após a visita de Xi agressores jogaram explosivos em um mercado de hortaliças em Urumqi, ferindo 94 pessoas e matando pelo menos 39.

Nesse cenário sanguinolento, Xi proferiu uma série de discursos secretos estabelecendo o rumo da linha dura que culminou na ofensiva de segurança atualmente em curso em Xinjiang.

A mídia estatal mencionou esses discursos, mas nenhum deles foi divulgado. O texto de quatro deles, no entanto, estava entre os documentos vazados.

"Os métodos que nossos camaradas têm em mãos são muito primitivos", disse Xi em uma palestra, depois de inspecionar um esquadrão policial antiterrorismo em Urumqi.

"Nenhuma dessas armas é resposta para suas grandes lâminas de facão, cabeças de machado e armas de aço frio." "Devemos ser tão severos quanto eles", acrescentou, "e não mostrar absolutamente nenhuma piedade."

Em várias passagens surpreendentes, Xi também disse às autoridades para não discriminarem os uigures e respeitarem seu direito à religiosidade e rejeitou propostas para tentar eliminar totalmente o islamismo da China.

Mas o ponto principal de Xi era inconfundível: ele liderava o partido em uma curva acentuada em direção a uma maior repressão em Xinjiang.

Antes de Xi, o partido costumava descrever os ataques em Xinjiang como atos de alguns fanáticos. Mas Xi argumentou que o extremismo islâmico havia se enraizado em várias partes da sociedade uigur.

A violência de militantes uigures nunca ameaçou o controle comunista da região. Embora os ataques tenham se tornado mais mortais após 2009, quando quase 200 pessoas morreram em distúrbios étnicos em Urumqi, eles permaneceram relativamente pequenos, dispersos e pouco sofisticados.

Mesmo assim, Xi alertou que a violência estava se espalhando de Xinjiang para outras partes da China e poderia manchar a imagem forte do partido.

O antecessor de Xi, Hu Jintao, respondeu aos tumultos de 2009 em Urumqi com repressão, mas também enfatizou o desenvolvimento econômico como uma cura para o descontentamento étnico.

Xi, porém, sinalizou uma ruptura com a abordagem de Hu.

"Nos últimos anos, Xinjiang cresceu muito rapidamente e o padrão de vida aumentou de forma consistente, mas mesmo assim o separatismo étnico e a violência terrorista continuam aumentando", disse ele.

"Isso mostra que o desenvolvimento econômico não traz automaticamente ordem e segurança duradouras."

Um muezin soa o chamado à oração do telhado de uma mesquita em Kashgar, na província de Xinjiang, no oeste da China
Um muezin soa o chamado à oração do telhado de uma mesquita em Kashgar, na província de Xinjiang, no oeste da China - Adam Dean/The New York Times

Garantir a estabilidade em Xinjiang exigiria uma ampla campanha de vigilância e coleta de informações para erradicar a resistência na sociedade uigur, argumentou Xi.

Ele disse que a nova tecnologia deve fazer parte da solução, prenunciando a utilização pelo partido de reconhecimento facial, testes genéticos e grandes bancos de dados em Xinjiang.

Em meses, começaram a surgir locais de doutrinação em Xinjiang —principalmente pequenas instalações, que abrigavam dezenas ou centenas de uigures ao mesmo tempo em sessões destinadas a pressioná-los a rejeitar a devoção ao islã e a demonstrar gratidão pelo partido.

Então, em agosto de 2016, um linha-dura chamado Chen foi transferido do Tibete para governar Xinjiang. Novos controles de segurança e uma expansão drástica dos campos de doutrinação se seguiram.

'Eu quebrei as regras'

Em fevereiro de 2017, Chen disse a milhares de policiais e tropas em Urumqi para se prepararem para uma "ofensiva esmagadora e obliteradora". Nas semanas seguintes, os documentos indicam que a liderança definiu planos para deter um grande número de uigures.

Chen emitiu uma ordem abrangente: "Reúnam todos os que devem ser reunidos".

A frase vaga aparece repetidamente em documentos internos a partir de 2017 e estava sendo aplicada a pessoas em diretrizes que ordenavam, sem mencionar procedimentos judiciais, a detenção de qualquer pessoa que apresentasse "sintomas" de radicalismo religioso ou opiniões antigovernamentais.

As autoridades citaram dezenas desses sinais, incluindo comportamentos comuns entre os uigures devotos, como usar barba longa, deixar de fumar ou beber, estudar árabe e rezar fora das mesquitas.

O número de pessoas arrastadas para os campos continua sendo um segredo bem guardado.

Mas um dos documentos vazados oferece uma pista da escala da campanha: instruía as autoridades a impedir a propagação de doenças infecciosas em instalações lotadas.

As ordens eram especialmente urgentes e controversas no condado de Yarkand, uma série de cidades e vilarejos rurais no sul de Xinjiang, onde quase todos os 900 mil residentes são uigures.

Nos discursos de 2014, Xi havia apontado o sul de Xinjiang como a linha de frente em sua luta contra o extremismo religioso. Os uigures compõem quase 90% da população do sul, em comparação com pouco menos da metade de Xinjiang.

Alguns meses depois, mais de cem militantes uigures armados de machados e facas atacaram um escritório do governo e uma delegacia de polícia em Yarkand, matando 37 pessoas, segundo relatórios do governo. Na batalha, as forças de segurança mataram 59 agressores.

Um oficial chamado Wang Yongzhi foi nomeado para dirigir Yarkand logo depois.

Mas entre os documentos mais reveladores entre os vazados estão dois que descrevem a queda de Wang —um relatório de 11 páginas resumindo a investigação interna do partido de seus atos e o texto de uma confissão de 15 páginas que ele pode ter feito sob coação.

Ambos foram distribuídos internamente no partido como um aviso para que as autoridades entrassem nas fileiras da repressão.

Wang começou a reforçar a segurança em Yarkand, mas também incentivou o desenvolvimento econômico para lidar com o descontentamento étnico.

E ele procurou suavizar as políticas religiosas do partido, declarando que não havia nada errado em ter um Alcorão em casa e encorajando as autoridades do partido a lê-lo para entender melhor as tradições uigures.

Quando as detenções em massa começaram, Wang fez como lhe foi dito a princípio. Ele construiu duas amplas instalações de detenção, onde reuniu 20 mil pessoas.

Mas, em particular, Wang tinha dúvidas, de acordo com a confissão que assinou mais tarde, que teriam sido cuidadosamente avaliadas pelo partido.

Ele estava sob intensa pressão para evitar uma explosão de violência em Yarkand e temia que a repressão provocasse uma reação.

A liderança havia estabelecido metas de redução da pobreza em Xinjiang. Com tantos residentes em idade ativa sendo enviados para os campos, porém, Wang temia que as metas estivessem fora de alcance.

Equipes secretas de investigadores viajaram pela região identificando aqueles que não estavam fazendo o suficiente. Em 2017, o partido abriu mais de 12 mil investigações contra seus membros em Xinjiang por infrações na "luta contra o separatismo".

Wang talvez tenha ido mais longe que qualquer outra autoridade. Silenciosamente, ele ordenou a libertação de mais de 7.000 internos do campo —um ato de desafio pelo qual seria detido, despojado do poder e processado.

"Sem aprovação e por minha própria iniciativa", acrescentou, "eu quebrei as regras".

Wang desapareceu discretamente da vista do público depois de setembro de 2017. Cerca de seis meses depois, o partido fez dele um exemplo.

Tanto o relatório quanto a confissão de Wang foram lidos em voz alta para autoridades de Xinjiang. Mas o maior pecado político de Wang não foi revelado ao público.

Em vez disso, as autoridades o esconderam no relatório interno. "Ele se recusou", dizia, "a deter todos os que deviam ser detidos".

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.