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Cresce o debate sobre identidade negra nos Estados Unidos

Americanos negros descendentes de escravos querem tratamento diferente de imigrantes negros

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Farah Stockman
The New York Times

Em Hollywood, Harriet Tubman será interpretada em um novo filme por uma mulher negra britânica, para aborrecimento de alguns americanos negros.

No censo dos Estados Unidos, espera-se que um imigrante nigeriano ultrarrico e uma afro-americana de baixa renda do sul fiquem na mesma seção.

Quando muitas universidades americanas se gabam de seus números de diversidade, os estudantes negros nascidos no Bronx e nas Bahamas são contados como iguais.

Um debate intenso está ocorrendo nas comunidades negras nos Estados Unidos sobre em que medida a identidade deve ser definida pela herança africana - -ou se os vínculos ancestrais com a escravidão são o que deve contar acima de tudo.

As tensões entre americanos negros descendentes de escravos e imigrantes negros da África e do Caribe não são novas, mas um grupo de agitadores online está tentando transformar essas divergências em um movimento político.

Atriz britânica Cynthia Erivo posa para fotos na estreia do filme "Harriet" no festival de Toronto, em 10 de setembro de 2019. Ela interpreta a abolicionista americana Harriet Tubman e sofreu crítica de americanos negros que gostariam que a personagem fosse interpretada por uma negra americana, descendente de escravos, e não por uma estrangeira.
Atriz britânica Cynthia Erivo posa para fotos na estreia do filme "Harriet", no festival de Toronto, em 10 de setembro de 2019. Ela interpreta a abolicionista americana Harriet Tubman e sofreu crítica de americanos negros que gostariam que a personagem fosse interpretada por uma negra americana, descendente de escravos, e não por uma estrangeira. - REUTERS

Eles querem que faculdades, empregadores e o governo federal deem prioridade aos americanos negros cujos ancestrais trabalharam em cativeiro, e argumentam que políticas de ação afirmativa originalmente criadas para ajudar os descendentes de escravos nos EUA têm sido amplamente utilizadas para beneficiar outros grupos, incluindo imigrantes da África e do Caribe.

Os americanos descendentes de escravos, dizem eles, deveriam ter uma categoria racial própria nos formulários do censo e em matrículas de faculdades, e não deveriam ser agrupados com outros que têm a mesma cor de pele, mas experiências de vida muito diferentes.

O grupo, que se autodenomina ADOS, sigla em inglês de Americanos Descendentes da Escravidão, é pequeno em número, com membros ativos estimados em milhares. Mas a discussão que eles provocam está fluindo por conversas em toda parte.

Aqueles que adotam sua filosofia apontam as disparidades entre os negros que imigraram voluntariamente para os Estados Unidos e outros cujos ancestrais foram trazidos acorrentados.

Aproximadamente 10% dos 40 milhões de negros que vivem nos Estados Unidos nasceram no exterior, segundo o Centro de Pesquisas Pew, contra 3% em 1980. Os imigrantes africanos são mais propensos a ter diploma universitário do que os negros e brancos que nasceram nos Estados Unidos.

Um estudo de 2007 publicado no American Journal of Education concluiu que 41% dos calouros negros nas principais faculdades do país eram imigrantes ou filhos de imigrantes, embora esses grupos representem 13% da população negra dos Estados Unidos.

Em 2017, os estudantes negros na Universidade Cornell protestaram a favor da admissão de mais "estudantes negros sub-representados", que eles definiram como americanos negros com várias gerações nos EUA. "Faltam investimentos em estudantes negros cujas famílias foram afetadas diretamente pelo Holocausto Africano nos Estados Unidos", escreveram os estudantes ao presidente da universidade.

A direção da universidade diz que os estudantes negros de outros países contribuem para aumentar a diversidade no campus, mesmo que sua admissão não atenue as injustiças da escravidão americana.

Muitos grupos de imigrantes negros também são descendentes de escravos em outros países.
O produtor de cinema Tariq Nasheed está entre os defensores declarados da ideia de que os descendentes americanos da escravidão deveriam ter sua própria identidade étnica.

"Todos os outros grupos, quando chegam aqui, se esforçam para dizer: 'Sou jamaicano. Sou nigeriano. Sou da Somália'", explicou ele. "Mas quando decidimos dizer: 'OK. Somos um grupo étnico diferente', as pessoas veem isso como negativo."

Neste ano, respondendo a pedidos de "dados mais detalhados e desagregados sobre nossa diversificada experiência americana", o Departamento do Censo anunciou que os afro-americanos poderão listar suas origens nos formulários do censo pela primeira vez, e não simplesmente marcar "negro".

O objetivo dos dois fundadores do ADOS -- Antonio Moore, advogado em Los Angeles, e Yvette Carnell, ex-assessora de parlamentares democratas em Washington -- é abordar as frustrações dos americanos negros, aproveitando as mudanças demográficas do país.

Abraçando seu papel de insurgentes, Moore e Carnell realizaram sua primeira conferência nacional em outubro e adotaram como um princípio fundamental de sua plataforma as reparações pelo brutal sistema escravagista sobre o qual os EUA foram construídos.

Seu movimento também se tornou um para-raios de críticas da esquerda. Sua desconfiança dos imigrantes às vezes adquire um tom semelhante ao do presidente Donald Trump. E o grupo atacou ferozmente o Partido Democrata, exortando os eleitores negros a não votarem no próximo candidato presidencial democrata, a menos que ele ou ela produza um plano econômico específico para a população ADOS do país.

Tais táticas levaram alguns a acusar o grupo de semear a divisão entre afro-americanos e a se engajar em uma forma de supressão de eleitores não muito diferente dos expurgos de eleitores e das iniciativas de divisão distrital defendidos por alguns republicanos.

"Não votar resultará em mais um mandato de Donald Trump", disse Brandon Gassaway, secretário nacional de imprensa do Comitê Nacional Democrata.

Shireen Mitchell, fundadora da Stop Online Violence Against Women (Parem a Violência Online Contra as Mulheres), está travando uma batalha online com ativistas do ADOS há meses. Mitchell afirma que os líderes do grupo estão "usando as reparações como arma" para tornar Trump mais palatável aos eleitores negros. Outros apontaram que Carnell apareceu uma vez em seu canal no YouTube com o chapéu "Faça os EUA Grandes de Novo".

Recentemente, Hollywood tornou-se a fonte de grande parte da frustração em torno da linha divisória entre afro-americanos nascidos nos EUA e imigrantes negros. Quando a atriz negra britânica Cynthia Erivo foi contratada para interpretar a abolicionista Harriet Tubman, o elenco sofreu ataques imediatos. Da mesma forma, o cineasta Jordan Peele foi criticado por contratar Lupita Nyong'o, que é queniana, e Daniel Kaluuya, britânico, para interpretarem personagens afro-americanos em seus filmes.

Moore, 39, e Carnell, 44, dizem que não são bodes expiatórios negros, nem tentam desviar os eleitores negros. Eles dizem que estão apenas exigindo algo concreto dos democratas em troca de votos, e tentando gerar consciência sobre as dificuldades econômicas de muitos americanos negros.

Carnell também foi criticada por seu serviço no conselho da Progressistas pela Reforma da Imigração, grupo anti-imigração que recebeu financiamento de uma fundação vinculada a John Tanton, citado como a força por trás do movimento nacional nativista pelo Centro Sulino de Direito da Pobreza.

Um boletim de setembro da Progressistas pela Reforma da Imigração elogiou a crescente influência política do ADOS, chamando-o de "um movimento que entende o impacto que a imigração irrestrita teve nos trabalhadores mais vulneráveis do nosso país".

Neste verão, o ADOS provocou uma onda de críticas depois que Carnell reclamou que a senadora democrata Kamala Harris, da Califórnia, estava concorrendo à Presidência como candidata afro-americana, mas não apresentou uma agenda para os negros. Ela observou que Harris é filha de uma indiana e um jamaicano. Os críticos rapidamente acusaram Carnell de nativismo e xenofobia.

E embora Carnell e Moore digam que o ADOS é um movimento apartidário, sua hashtag foi usada por conservadores que apoiam Trump.

"Gosto de #ADOS", escreveu Ann Coulter, comentarista conservadora branca, no Twitter. "Mas acho que deveria ser #DOAS --Descendentes de Escravos Americanos. Não escravos haitianos, não escravos marroquinos."

Na conferência em Kentucky, os apoiadores se opuseram à ideia de que eram anti-imigrantes ou adeptos da agenda do presidente. "Não somos xenófobos", disse Mark Stevenson, diretor da Marinha, que disse ter fundado recentemente uma seção do ADOS em Columbus (Ohio). "Se você perguntar a um latino qual é sua herança, ele dirá que é porto-riquenho, dominicano ou cubano. Esta é a nossa herança", acrescentou ele. "Não vejo o problema."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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