Evo Morales riu de nós, diz líder de cocaleiros que romperam com ex-presidente

Grupo apoia o líder opositor direitista Luis Fernando Camacho

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La Paz

“Veja nossa coca. As folhas estão inteiras, são pequenas, verdinhas, preparadinhas para mascar”, diz Gerardo Ríos, 40, enquanto tira o produto de um saco, na mesa de seu escritório. Na parede atrás dele, quadros de Tupak Katari e Wartolina Sisa, dois heróis dos indígenas aimaras.

Ele está no segundo andar do mercado legal de coca do bairro de Villa Fatima, um edifício com pintura verde desgastada em La Paz, na Bolívia. O local funciona 24 horas, e a todo momento chegam produtores com os taquis (sacos de 22 quilos) da planta. Senhoras e crianças com roupas tradicionais dormem nos corredores. No andar de baixo, barracas vendem barrinhas de estévia sabor menta e chocolate para adoçar a coca na boca.

Mulher vende folhas de coca
Mulher vende folhas de coca no mercado legal do bairro de Villa Fatima, em La Paz - Bruno Santos/Folhapress

Ríos é secretário de comercialização da Adepcoca, associação de cocaleiros da região dos Yungas, a noroeste de La Paz. Com o lema “Coca é vida”, eles têm 37 mil afiliados e dizem produzir a “coca originária ancestral”, consumida há milhares de anos pelos povos andinos, pura ou na forma de chá, para matar a fome, despertar os sentidos ou ajudar a curar doenças.

“Nossa plantação é toda manual. Fazemos como os antigos incas”, orgulha-se.

Diferentemente dos plantadores de coca da região de Cochabamba, que se mantém como uma das principais bases de apoio do ex-presidente Evo Morales, os cocaleiros dos Yungas romperam com ele e estiveram entre os movimentos que o pressionaram a deixar o governo.

No início de novembro, a Adepcoca anunciou apoio ao empresário Luis Fernando Camacho, líder opositor direitista da região de Santa Cruz.

A briga da associação com Evo começou em 2017, quando o governo promulgou uma legislação ampliando a área para a produção da planta. A lei 906 estabeleceu que o país pode cultivar 22 mil hectares de coca —14.300 na região dos Yungas, onde a produção era limitada a 12 mil hectares, e 7.700 no Trópico de Cochabamba, onde era ilegal. 

 

Para especialistas, o que ocorreu foi a legalização da coca que já era produzida no berço político dele —desde a década de 1990, Evo liderou a federação dos cocaleiros no Trópico. O ex-presidente afirmava que queria incentivar o desenvolvimento por meio da produção legal da coca e sua posterior industrialização.

A Adepcoca, porém, diz que favoreceu-se a produção desviada para o tráfico de cocaína.

“O que fez esse governo? Do nada, sem estudo de mercado, impôs uma lei que tornou referência os setores de Cochabamba, área onde não há controle e onde a maioria da coca vai para o mercado ilegal”, defende Ríos, que aponta ainda diferenças entre as folhas de coca das duas regiões, dizendo que a do Trópico é menos propensa ao consumo direto.

“Evo Morales riu de nós. Não o reconhecemos como presidente cocaleiro. Ele é dirigente cocaleiro da área ilegal.”

Segundo o secretário, os yunguenhos também se decepcionaram porque o governo de Evo não melhorou como havia prometido as condições das estradas em sua região. Uma delas, de apenas 3 metros de largura, costuma ser descrita como “o caminho mais perigoso do mundo” por causa dos acidentes.

Cerca de 15 mil produtores da Adepcoca marcharam com Luis Fernando Camacho no último dia 10, quando ele levou uma carta de renúncia simbólica e uma Bíblia ao palácio do governo. Quando obteve o apoio deles, o empresário disse que na região “não se produz narcotráfico, se produz cultura, identidade, história”. 

“Camacho é dirigente de uma região que comercializa 60% da coca dos Yungas. Ele chegou a La Paz e vimos que era o momento de unirmos em um só bloco. Marchamos contra Evo até o último momento. Nós, cocaleiros, ajudamos a derrubá-lo”, diz Ríos.

Ríos não concorda com a tese de que Evo tenha sido tirado do cargo em um golpe de Estado —o ex-presidente renunciou em meio a protestos populares e à pressão de militares e policiais, e a vice-presidente do Senado assumiu interinamente em um processo questionado.

“Isso é mentira. Ele é que estava articulando um golpe. Nos recuperamos a democracia”, afirma. 

Depois da queda de Evo, o presidente da Adepcoca, Franklin Gutierrez, que havia sido preso em seu governo, foi liberado. Ele foi apontado como responsável pela morte de um tenente durante um enfrentamento no ano passado —seus advogados negam e dizem que não há provas que o incriminem.

A Folha tentou contato com os cocaleiros de Cochabamba, sem sucesso. Uma jornalista local afirmou que os líderes não têm falado com a imprensa e que temem ser presos.

Na época da lei 906, em 2017, o líder da federação dos produtores de lá, Andrónico Rodriguez, afirmou que apenas uma pequena porcentagem da planta do país se desvia para o narcotráfico e que isso ocorre nas duas regiões produtoras, e não só no trópico. 

Rodríguez pediu diálogo aos produtores dos Yungas e disse que o descontentamento deles tinha a ver com interesses políticos de Franklin Gutierrez. Também afirmou que vender a imagem da Bolívia como um Estado narcotraficante faria mal à reputação do país. 

Neste mês, após a renúncia de Evo, Rodríguez declarou que seu grupo estava “em mobilização nacional contra o golpe de Estado” e que rejeitava “a autoproclamação da senhora Añez, que foi inconstitucional”.

Na última sexta (15), um confronto da polícia e de militares com cocaleiros que se manifestavam nos arredores de Cochabamba deixou ao menos oito mortos e 20 feridos —todos civis.

A Bolívia é o terceiro maior produtor de coca do mundo, atrás da Colômbia e do Peru. Segundo dados de 2018 do escritório da ONU sobre Drogas e Crime (UNODC), 65% das plantações estão nos Yungas e 34%, no Trópico. O governo de Evo informou ao órgão ter aumentado os esforços de controle de áreas ilegais, concentrando 65% do esforço em Cochabamba. 

O mercado de Villa Fatima é responsável pela venda de 90% das 24 mil toneladas comercializadas em mercados legais na Bolívia —só existe outro mercado regular no país, o de Sacaba, em Cochabamba.

Ríos explica que o controle da coca legal é burocrático. São necessárias autorizações do governo, há postos de checagem na estrada e limitação de quantidade de venda a 22 quilos —comercializados a 2.000 bolivianos (R$ 1.220). Cada produtor tem uma carteirinha, e eles são divididos nas salas do mercado por região de origem. Além de intermediários que buscam a planta para revender no resto do país, também vão clientes de La Paz comprar a coca para consumo próprio.

Há divisões políticas entre os cocaleiros dos Yungas, e uma parte minoritária continuou apoiando Evo.

Com o respaldo do governo, eles criaram mercados paralelos, um deles em um hospital em construção, o que esvaziou o de Villa Fatima. Com a queda de Evo, esses outros mercados foram fechados. 

“Todos em algum momento apoiamos o presidente indígena que vinha do campo”, diz Ríos. “Não podemos dizer que toda a gestão de Morales foi ruim. No início ele melhorou o país. Mas nos consideramos traídos por ele.”

 

Plantador de coca deixou trabalho escravo em São Paulo

Das plantações de coca dos Yungas para as oficinas de costura do Brás, em São Paulo —e depois o contrário. Inspetor do mercado legal de coca de Villa Fatima, Yumar Gonzales, 24, viveu quatro anos na maior cidade do Brasil.

Trabalhava na oficina de costura de propriedade de sua irmã e também foi locutor de uma rádio comunitária e DJ de festas da rua Coimbra, que concentra imigrantes bolivianos. Ao chegar, passou um ano e meio sem receber salário, passando a ganhar entre R$ 500 e R$ 800 após esse período. Trabalhava das 7h às 22h. 

Voltou para a Bolívia em 2017 e vive em Coripata, cidade na região dos ​Yungas. Sua família cultiva coca “desde sempre”, conta. “Gostei de morar nos dois lugares, mas o trabalho é mais duro lá no Brasil. Não é fácil plantar coca, tem que passar o dia agachado, mas lá é mais difícil”, diz.

Franzino e com fala tímida, Yumar não dizia aos brasileiros o que sua família fazia na Bolívia. “Lá eles só conhecem a coca como droga. Nem sabem que existe coca legal”, diz.

Mas conta que é possível encontrar a planta em São Paulo, vendida de forma irregular. “Custava R$ 50 o pacote de 120 gramas. Aqui é muito mais barato: 10 pesos (R$ 6).”

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