Houve golpe e só participaremos de eleições se houver Justiça, diz vice de Evo

Álvaro García Linera descarta nova candidatura em novo pleito na Bolívia

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Montevidéu

Álvaro García Linera, 57, atende o telefone na manhã deste domingo (24), na Cidade do México. Ao fundo, é possível escutar a voz de sua filha.

“Espere, estou procurando a mãe dela. Está inquieta, ainda não se acostumou a esse lugar”, diz o ex-vice presidente boliviano à Folha, enquanto tenta encontrar a esposa. 

“Estamos morando em uma instalação militar, não é exatamente uma casa, mas é temporário.” 

García Linera e Evo Morales estão asilados no México desde 12 de novembro, dois dias após o agora ex-presidente renunciar, pressionado por manifestações populares e pelas Forças Armadas. 

Álvaro García Linea, à esq., e Evo Morales ao desembarcarem na Cidade do México
Álvaro García Linea, à esq., e Evo Morales ao desembarcarem na Cidade do México - David de la Paz - 12.nov.19/Xinhua

Pouco antes, naquele mesmo 10 de novembro, ambos haviam anunciado a realização de novas eleições no país, depois de a OEA (Organização dos Estados Americanos) realizar uma auditoria na contagem de votos do pleito presidencial e apontar irregularidades na realização do processo que deu vitória a Evo.

Mas a convocação de novas eleições não foi o bastante para arrefecer a convulsão no país. Após o anúncio, o general Williams Kaliman “sugeriu” a renúncia do então presidente.

Sem o apoio dos militares, Evo e García Linera —com sua mulher e filha— embarcaram em um avião oferecido pelo governo do presidente mexicano, o esquerdista Andrés Manuel López Obrador.

A presidente autoproclamada Jeanine Añez está dando continuidade ao projeto de convocar novas eleições. O MAS [Movimento para o Socialismo, partido de Evo] e vocês vão participar?
Primeiro é preciso lembrar que quem convocou eleições primeiro, e como autoridade legítima que éramos, fomos nós, depois da recomendação da OEA.

Isso mesmo tendo convicção de que vencemos sem fraudes no último dia 20 de outubro. Mas resolvemos convocar a eleição para evitar a violência e os confrontos que poderiam existir se não o fizéssemos, e que com muita tristeza estamos acompanhando aqui, de longe.

Mas isso quer dizer que não participarão dessas eleições convocadas pelo novo governo?
Isso não está decidido ainda. Mas não participaremos de uma eleição se a repressão não parar e se não houver investigação sobre os massacres que estão sendo perpetrados contra a população boliviana.

Este governo ilegítimo, que se propôs a pacificar o país, já acumula um saldo de 33 mortos, 400 feridos e mais de mil detenções de perseguidos políticos. Enquanto isso não for esclarecido e resolvido, não creio que participaremos.

Se for resolvido, ainda assim, eu e o presidente não seremos mais candidatos. Já o MAS, este sim, poderia participar, porque é nosso dever como partido político junto à cidadania e ao nosso eleitorado. Nós nos dedicaremos à política e a estar junto à população, mas não nesses cargos.

O sr. considera que houve um golpe de Estado?
Sem dúvida. Nossa renúncia tinha de ter sido lida em voz alta no Parlamento e aprovada. Não foi. Depois, essa senhora, que representa um partido que teve 5% dos votos na última eleição, declarou-se presidente sem a devida votação, desvirtuando o artigo constitucional sobre como se deve dar a sucessão presidencial na ausência do mandatário e dos próximos na linha de sucessão.

Além disso, jogou o Exército nas ruas contra a população. Nós nunca resolvemos conflitos assim. Nos nossos anos de gestão, jamais enviamos tanques para proteger a Casa de Governo, jamais usamos aviões de guerra e helicópteros para constranger e atacar manifestantes. 

O sr., como intelectual e como político, havia percebido que a sociedade boliviana estava mudando a ponto de dar espaço para que algo como essa situação que está ocorrendo agora se concretizasse?
Eu havia percebido um processo de fascistização das classes médias. Uma inquietação cada vez maior por parte da direita, da burguesia. Mas nós, eu e o presidente, achávamos que isso poderia ser canalizado por meio das urnas.

Afinal, havia candidatos de direita, de centro-direita, que poderiam representar a canalização dessa insatisfação. Mas isso não ocorreu, nós vencemos a eleição. E isso não foi aceito.

Foi uma surpresa?
O que nós não contamos que ia acontecer era a força que ia tomar a irradiação de um discurso contra nós, racista, de ódio, violento, e logo depois assumido pela própria polícia num espaço de tempo muito rápido.

Sim, essa parte do processo foi uma surpresa. Porque, como eu disse antes, nós jamais respondemos com tanques, nós sempre buscamos o diálogo. 

Há uma crítica em relação ao modo como Evo segue influenciando, insuflando a militância e, em parte, colaborando com a violência na Bolívia, por meio de entrevistas e de sua atividade nas redes sociais. O sr. não está de acordo?
Não, não estou. O presidente tem pedido calma, pacificação. Nós renunciamos em nome da pacificação. Mas é claro que estamos mantendo comunicação com nossos parlamentares e nossos apoiadores lá, mas para que busquem influenciar pelas vias legais. 

A comunidade internacional tem reagido de forma ambígua. Alguns presidentes não reconheceram a presidente autoproclamada, como o México ou o Uruguai. Outros, como Brasil e Colômbia, sim. Por quê?

Esses países que não estão nos apoiando estão atuando mais por questões ideológicas do que preocupados com a democracia da região. Nossa região está em crise, desmembrada, desarticulada, não era assim antes.

Nós havíamos sofrido uma tentativa de golpe em 2008 [quando opositores de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando se levantaram contra o governo de evo], e o que aconteceu? Tivemos apoio da Unasul, tivemos apoio de vários governos de direita, como o de Álvaro Uribe [Colômbia], isso porque era uma época em que a região colocava a democracia antes das diferenças ideológicas.

Isso acabou. Desta vez, está sendo o contrário.

Foi a região que mudou, então?
Sem dúvida. Naquela época a resposta foi contundente contra o golpe que se tramava contra nós. Desta vez, não, e eu atribuo ao fato de os países estarem muito desunidos, perdeu-se uma concepção de região, perdeu-se um compromisso em fortalecer a democracia da América Latina.

Estão todos preocupados com seu poder local, com alinhamentos ideológicos apenas. A América Latina perdeu seu norte constitucionalista que antes tinha. 

E qual o plano agora? Querem voltar? Têm uma data?
Queremos voltar o mais rapidamente possível, mas temos nossas preocupações. Queremos nossos direitos restaurados e queremos Justiça para as coisas que foram feitas, os abusos, os incêndios às propriedades, os ataques pessoais a nossa militância, a perseguição aos indígenas.

Nós seguiremos lutando, daqui ou da Bolívia. E, quando voltarmos para a Bolívia, será para seguir lutando na política. Não como candidatos mais. Eu sempre estarei ao lado da população pobre e mais humilde de meu país.

Houve uma ameaça a sua biblioteca, de mais de 30 mil volumes, em sua casa em La Paz. Como ficou isso?
Por sorte a ameaça não se concretizou, e estou negociando com acadêmicos amigos, com instituições, para que esses livros sejam transferidos para outro lugar, para bibliotecas, universidades, porque são um legado cultural importante e porque não queremos voltar a ter imagens como as da Alemanha nazista, em que se queimava livros em praça pública.

Seria um símbolo mais de que o país está se fascistizando. Mas não devemos esquecer que, sim, queimaram-se muitas casas de companheiros nossos. E nós vamos exigir que todos esses abusos sejam esclarecidos.


Álvaro García Linera
Vice-presidente da Bolívia de 2006 a 2019, é formado em sociologia e matemática, foi líder da guerrilha Túpac Katari e esteve preso de 1992 a 1997 sob acusação de terrorismo. Escreveu "A Potência Plebeia" (Boitempo, 2010) e "Marxismo e Indigenismo na Bolívia" (inédito no Brasil), entre outros livros.

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