Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Mike Pence pareceu surpreso quando relatei ameaças à imprensa no Brasil

Repórter se reuniu com vice-presidente americano na terça (19)

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Washington

Mike Pence, vice-presidente dos Estados Unidos, pareceu genuinamente surpreso quando relatamos as ameaças contra a imprensa em nossos países e afirmamos que a retórica anti-mídia do presidente Donald Trump encoraja os líderes populistas de Brasil, Índia, Paquistão e outras nações. 

O vice-presidente americano perguntou se o presidente Jair Bolsonaro não condenava, em público, esses ataques a jornalistas. "Condenar? Não, na verdade, ele estimula os ataques contra jornalistas", eu disse a ele. 

Mike Pence nos recebeu na tarde de terça-feira (19) num salão do Eisenhower Executive Building Office, ao lado da Casa Branca. Éramos os cinco vencedores do Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa de 2019 do Comitê de Proteção aos Jornalistas (CPJ), mais o vencedor do prêmio Gwen Ifill de Liberdade de Imprensa, ao lado do diretor do comitê, Joel Simon, e outros integrantes do CPJ.

Pence é caloroso. Tem um aperto de mão firme e olha nos olhos das pessoas. Diferentemente de Trump, o republicano Pence tem um histórico de apreço pela liberdade da mídia. Ele foi um dos líderes da bancada de Liberdade de Imprensa no Congresso, ao lado do democrata Adam Schiff —que hoje, ironicamente, está à frente da investigação de impeachment de Trump

Patrícia Campos Mello e jornalistas após visita ao vice-presidente americano Mike Pence **Folha por Folha** Exclusivo Corrida
Zaffar Abbas (esq.), Miguel Mora, Lucia Pineda, Maxence Melo, Patrícia Campos Mello e Neha Dixit em frente ao prédio em que foram recebidos por Mike Pence - Acervo Pessoal

Na reunião da terça-feira, o vice-presidente americano escutou atentamente enquanto descrevi as medidas provisórias que Bolsonaro baixou na tentativa de sufocar financeiramente jornais críticos; o corte dos anúncios do governo em publicações que não agem como defensores incondicionais das políticas bolsonaristas; as declarações de Fabio Wajngarten, chefe da Secom, e do próprio Bolsonaro instando anunciantes a cancelar contratos publicitários em veículos que não rezam pela cartilha do bolsonarismo.

Contei também sobre a frequente intimidação online contra jornalistas, especialmente mulheres, e como o presidente e seus filhos encorajam essas milícias virtuais. Relatei como divulgam nossos endereços e telefones nas redes sociais, como nos fazem ameaças por telefone e pessoalmente, e como essas agressões migram para o mundo real. 

Pence ficou especialmente contente ao saber que eu havia sido correspondente em Washington por muitos anos e havia até feito reportagens "embedded" com as tropas americanas no Afeganistão.
Minha colega indiana, a brilhante jornalista investigativa Neha Dixit, abordou suas matérias sobre tráfico de crianças e doutrinação pelo RSS, organização fundamentalista hindu que é a base do primeiro-ministro Narendra Modi. Relatou como sofreu ameaças de morte, processos e teve a casa apedrejada após suas reportagens.

O grande tanzaniano Maxence Melo, cuja plataforma online na Tanzânia funciona como um Wikileaks africano, como ele define, narrou como vem expondo vários casos de corrupção e teve de comparecer mais de cem vezes ao tribunal (o que nos lembra a tentativa da Igreja Universal do Reino de Deus de intimidar a grande repórter Elvira Lobato). 

Mostrando que não se trata de um problema de direita ou esquerda, os dois colegas nicaraguenses, Lucia Pineda e Miguel Mora, descreveram a opressão da imprensa pelo ditador de esquerda Daniel Ortega, que os manteve presos por 172 dias, acusados de praticar terrorismo apenas por fazer jornalismo crítico ao governo. Como a própria Lucia chegou a dizer, o Brasil de hoje lembra a Nicarágua de alguns anos atrás —ela vê os mesmos primeiros sinais de uma hostilidade à imprensa que se transforma em opressão aberta.

No caso da ditadura de esquerda da Nicarágua, no entanto, os EUA têm sido bastante proativos, e Lucia agradeceu pelas sanções contra Ortega e pela pressão pela libertação dos presos políticos.

O grande alerta veio de Zaffar Abbas, editor-chefe do jornal paquistanês Dawn e vencedor do prêmio Gwen Ifill. O paquistanês advertiu que a linguagem de Trump, que considera fake news qualquer imprensa crítica, está sendo apropriada por presidentes de grandes países emergentes, como Brasil, Índia e Paquistão. Só que, nesses países, os efeitos são muito piores, porque as instituições ainda estão se formando, são democracias em transição. 

Dawn tem sido atacado e hostilizado há anos pelos militares do Paquistão, que detêm boa parte do poder no país e intimidaram anunciantes, além de impedir a distribuição do jornal. Os impactos financeiros são visíveis —a equipe teve de aceitar cortes nos salários. 

Abbas alertou que é preciso ter cuidado com as campanhas de ataques à mídia crítica e independente, porque elas têm efeitos nefastos nas grandes democracias emergentes. Pence fez uma pausa e argumentou que, às vezes, o que se chama de mídia crítica não é mídia crítica, é outra coisa.
Prendemos a respiração, esperando o pior. Mas o vice parou antes de usar o termo favorito de seu chefe, fake news.

Talvez Pence tenha saído do encontro e esquecido totalmente o assunto. Mas temos a esperança que, um dia, ele vai se lembrar de alguns de nossos relatos, e entender que o termo fake news e a retórica anti-mídia popularizada por Trump se transformaram na grande arma de populistas ao redor do mundo para combater imprensa incômoda.

Afinal, esse é o mesmo Pence que, em 2005, disse no plenário da Câmara, de olho em seus colegas conservadores: "Se você acredita no papel limitado do Estado, você precisa entender que a única maneira de se controlar o poder do governo é ter uma imprensa livre e independente". 

Ele estava defendendo legislação para proteger jornalistas e suas fontes.

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