Descrição de chapéu

Percebi pela mãe que ele odiava Evo, conta jornalista que morou com Camacho

Líder opositor boliviano fez pós-graduação em Direito em Barcelona entre 2003 e 2005

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Patu Antunes
Barcelona

À renúncia de Evo Morales seguiu-se o vazio de poder e a ascensão de uma figura algo familiar aos brasileiros. Já apelidado de "Bolsonaro boliviano", Luis Fernando Camacho, 40, ganha espaço como opositor de fibra, agitador de massas e sem partido. Com retórica agressiva, direitista e ultracatólico, o empresário de Santa Cruz de la Sierra parece maior do que é –literalmente.

Sei disso porque fui sua colega de apartamento entre 2003 e 2004, quando vivíamos em Barcelona para uma pós-graduação. Eu, em belas artes. Ele, em direito. Franzino, com 1,65 m, aquele recém-formado de fala mansa e modos formais candidatou-se a um dos quartos do apartamento que eu alugara com uma amiga. 

Luis Fernando Camacho, líder da oposição a Evo Morales, em manifestação após a renúncia do agora ex-presidente da Bolívia
Luis Fernando Camacho, líder da oposição a Evo Morales, em manifestação após a renúncia do agora ex-presidente da Bolívia - Aizar Raldes - 10.nov.2019/AFP

Nós o selecionamos porque poderíamos treinar espanhol e porque ele era, claramente, um estudante "solvente".

Luis Fernando pagava sem reclamar os 250 euros mensais por um quarto de uns 20 metros quadrados no espaçoso apartamento do bairro de Les Corts, de classe média alta.

Naquela época, 250 euros mais os gastos de luz, água, gás e internet somavam uma quantia bastante salgada para estudantes latino-americanos. 

Para ele, não era um problema em absoluto, já que dispunha de um cartão de crédito ilimitado com todos os gastos bancados pelo pai –político e empresário, de quem ele falava sempre com orgulho.

Para nós, o apartamento era prático por estar a dez minutos da faculdade. Já Luis Fernando apreciava o "nível" do bairro e o fato de estar longe da esbórnia do centro.

A rotina de Luis Fernando era de casa às aulas e de lá à biblioteca. Estava sempre estudando e vez ou outra saía para caminhar ou tomar um café com algum colega. Era bastante insosso e rapidamente concluímos que era um carola.

Era muito católico, algo completamente anacrônico em Barcelona em 2003, e adorava a filha –isso nos levou a concluir que naquela família tão tradicional houve uma gravidez não planejada. Reservado, ele não abria espaço para perguntas mais íntimas.

A menina vivia com a mãe em Santa Cruz. Em uma época pré-redes sociais, Luis Fernando programava com esmero os dias em que falava com a filha por Skype. Ele tinha seu próprio laptop e ficava trancafiado no quarto matando a saudade da pequena.

Para se mudar para o nosso apartamento, ele só impôs uma condição: que pudesse receber sua mãe para o Natal –ela ficou um mês. 

A senhora Camacho era encantadora e parecia saída de um colégio de freiras para o posto de mãe e mulher exemplar. Mas, como quem saía de um claustro de repente, ela desatava a conversar em qualquer oportunidade. Foi com ela que nos demos conta que a família ODIAVA Evo.

Tivemos longas discussões com Luis Fernando e a mãe sobre Bolívia, Brasil, América Latina, Espanha. Para eles, Evo representava o pior da Bolívia, e estavam certos de que se chegasse à Presidência –o que ocorreria dois anos depois–, o país seria arrastado para um desastre sem precedentes. 

Para a família Camacho, a ascensão de alguém como Evo significava inverter a ordem natural das coisas, afrontar até Deus, afinal o motor econômico e social da Bolívia sempre fora Santa Cruz, a região mais "europeizada" do país, e eles pertenciam à nata dessa região.

Argumentamos que no Brasil também havia um sindicalista na Presidência e que, apesar do receio do mercado, o país não explodiu –pelo contrário, estava até melhorando. 

Sua mãe respondeu algo como: "Não há como comparar Lula com Evo. Lula não estudou, é de origem humilde, mas conhece o Brasil inteiro e é inteligente para saber que empresários são fundamentais para qualquer país. Evo, não. Ele vai romper a Bolívia".

A senhora Camacho nos contou, orgulhosa, que seu filho tinha intensa atividade política em Santa Cruz, continuando a tradição familiar. 

Antes de ir estudar em Barcelona, ele era vice-presidente da União Juvenil de Santa Cruz de la Sierra, uma espécie de ante-sala do poder máximo na região –o Comitê Cívico Pró Santa Cruz. Em 2007, já fora da gestão Camacho, a união foi definida pela Federação Internacional pelos Direitos Humanos (FIDH) como um “grupo paramilitar” de promoção de atos violentos contra indígenas e apoiadores de Evo Morales. 

Em fevereiro de 2004, Luis Fernando mudou de apartamento e ficou em Barcelona até terminar sua pós-graduação em 2005. Nunca mais nos encontramos. Agora sei que, depois de voltar, ele só retomou a militância em 2013. 

Nos anos do governo Evo, sua família, dizem veículos de comunicação do país, ficou ainda mais rica, com negócios de gás e seguros e um próspero grupo de empresas.

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