O sociólogo Manuel Castells, 77, estuda, entre outros temas, as explosões sociais contemporâneas.
O espanhol mapeou e analisou fenômenos em mais de 80 países, incluindo a Primavera Árabe, os "indignados" na Espanha, o Occupy Wall Street nos EUA, junho de 2013 no Brasil e as manifestações de estudantes no Chile em 2006 e 2011.
Nas últimas duas semanas, Castells, professor da Universidade da Califórnia e autor de "Redes de Indignação e Esperança – Movimentos Sociais na Era da Internet" (ed. Zahar), retornou a Santiago e observou o que vem ocorrendo na capital chilena há mais de um mês.
Em entrevista à Folha, ele conta as peculiaridades e as semelhanças entre este e demais movimentos.
Pede eleições presidenciais antecipadas e afirma, baseado em testemunhos e reportagens em veículos locais, que narcotraficantes atuam nas manifestações para provocar atos de vandalismo.
O que o sr. viu de diferente nos protestos chilenos em relação ao que observou em 2006 e 2011 no país?
Os aspectos mais importantes são a duração desse movimento, que ocorre desde 18 de outubro, e a violência espantosa que alcançou.
Mas o principal é o questionamento de um modelo que se apresentava falsamente como um modelo de sucesso. Como ouvi de um estudante de lá, "o neoliberalismo nasceu no Chile e morrerá no Chile".
O sr. estudou outros movimentos de rua, com diferenças entre si, mas com traços em comum, como, por exemplo, a falta de uma liderança clara e convocações feitas pela internet ou por boca a boca. O caso chileno tem peculiaridades quanto à organização das manifestações?
A convocação para os protestos é a mais típica, como todos os casos que vi e analisei nos últimos anos.
Há algo novo, porém, que é a coordenação da violência por parte de grupos de narcotraficantes. Não está claro qual é seu propósito. Mas isso não aconteceu em outras situações. Pode ser uma manipulação por parte da extrema direita.
Quais são as evidências da atuação de narcotraficantes nos atos?
Tenho testemunhos muito fidedignos e está publicado em veículos, como o La Tercera, por exemplo.
No meio das manifestações, o sr. pôde diferenciar as distintas reivindicações? Qual pareceu mais urgente? A dos estudantes, a dos que protestam pelas aposentadorias, a dos trabalhadores? Alguma bandeira parece mais urgente que outra?
Este é um movimento típico em termos de reclamações em dois sentidos. As aposentadorias são o tema central, pois os jovens lutam por seus avós. Mas a reivindicação unânime é por dignidade.
Dignidade é a mesma palavra que venho escutando em diferentes idiomas desde 2010, quando essas manifestações sociais começaram a se disseminar pelo mundo.
Há uma leitura comum de que se trata de um movimento "contra o neoliberalismo". O sr. está de acordo ou é preciso ler os matizes deste caso?
É uma reclamação contra o neoliberalismo porque é explícita, e os movimentos são sempre o que dizem que são, e não o que dizem os intelectuais.
Mas também, e sobretudo, novamente, reforço, é um movimento pela dignidade. Aliás, rebatizaram a Plaza Italia [onde os manifestantes se reúnem], informalmente, de Plaza Dignidad [praça dignidade, em português].
A nuance aqui é uma reclamação contra a elite local, que é muito arrogante e depreciativa. Assim é a elite chilena, e também a brasileira.
Em que sentido o sr. vê o legado do período ditatorial chileno (1973-1990) tanto no modo de se manifestar quanto na maneira como é feita a repressão?
Os jovens superaram esse trauma, porque não o viveram, e isso, creio, é fundamental. Já os grupos antidistúrbios estão atuando como bestas, mas creio que o fazem assim em todos os países.
O que o sr. acha da atitude do presidente Sebastián Piñera, que primeiro afirmou que o país estava em guerra, depois pediu desculpas e agora atende o pedido de uma possível Assembleia Constituinte? As ruas não parecem ter se acalmado com isso.
Piñera é um irresponsável e um incompetente que não entende nada e está afogado pela situação. Ele é parte do problema e não da solução.
O sr. acha que uma nova Constituição resolverá o conflito?
Viver numa democracia com uma Constituição ditada por Pinochet é um contrassenso e um escândalo.
Ainda que o presidente [Ricardo] Lagos [2000-2006] tenha mudado os artigos mais antidemocráticos, muitos elementos são um obstáculo que impedem as reformas no Chile.
O problema é que o procedimento para redigir a nova Constituição proposto por Piñera tem tantos obstáculos que ela ficaria pronta, no melhor dos casos, no meio de 2022. E a sociedade chilena não vai aguentar tanto tempo.
É preciso também fazer reformas mais imediatas e promover o julgamento e a punição aos policiais e àqueles que violaram direitos humanos. Isso precisa ocorrer o quanto antes.
E também adiantar as eleições, as da Constituinte e as presidenciais, que deveriam ser feitas juntas. E logo.
O sr. vê o surgimento de uma nova liderança política, uma pessoa ou um partido, que possa tomar as rédeas da oposição?
Não há alternativa partidária, e todos, inclusive a Frente Ampla [partido de oposição, de centro-esquerda], estão sendo questionados.
A sociedade tem de deliberar diante de um processo orgânico próprio e gerar um novo sistema político, com novos atores. Essa é a dificuldade.
Pois a classe política está se aferrando a seu monopólio de poder. E isso não ocorre somente no Chile, e sim em toda a América Latina e no mundo.
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