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Superando o estouro chileno por meio de uma nova Constituição

É evidente que o Chile atravessa uma grande crise de legitimidade política

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Rossana Castiglioni
Latino América 21

​​Desde meados de outubro de 2019, o Chile vem experimentando uma série de mobilizações e protestos sociais em grande escala.

No contexto desse estouro social, confluíram no espaço público, de modo heterogêneo, diversas organizações sociais e indivíduos independentes, motivados por formas diferentes de demandas setoriais, mas que aparentemente compartilham, transversalmente, de um questionamento às desigualdades sociais e do rechaço aos abusos de poder.

O estouro também tornou evidente que o Chile atravessa uma grande crise de legitimidade política. De acordo com informações do jornal La Tercera, durante o mês passado 4.317.076 chilenos se mobilizaram.

Para colocar esse número em contexto, é necessário considerar que que, nas mais recentes eleições presidenciais, em dezembro de 2017, 3.796.579 chilenos deram seu voto a Sebastián Piñera. De sua parte, o candidato de centro-esquerda Alejandro Guillier, o segundo mais votado, recebeu 3.159.902 votos.

Os números sugerem que a crise de legitimidade é significativa e que afeta não só a situação como a oposição.

No primeiro mês transcorrido desde o estouro social, as tentativas do governo de enfrentar a crise foram infrutíferas e, na opinião de quase todos, inadequadas.

O presidente do Chile, Sebastián Piñera, durante discurso em Santiago
O presidente do Chile, Sebastián Piñera, durante discurso em Santiago - Claudio Reyes - 17.nov.2019/AFP

No começo, o presidente Sebastián Piñera centralizou seus esforços em culpar os “violentistas” e apelou a um toque de recolher e ao estado de emergência para restabelecer a ordem. Posteriormente, ele se desculpou por sua falta de visão e anunciou uma série de medidas, de caráter fundamentalmente compensatório, para melhorar a situação dos mais vulneráveis.

Provavelmente porque essas iniciativas não escapam aos limites do “modelo” vigente e foram consideradas insuficientes, as mobilizações sociais e protestos não pararam e a popularidade do presidente continuou a cair em cada pesquisa de opinião.

Claramente perturbado por esse contexto, no dia 10 de novembro o governo anunciou sua disposição de promover uma reforma constitucional, por meio de um congresso constituinte, com ampla participação cidadã.

A Carta Magna produzida dessa maneira deveria ser ratificada posteriormente por meio de um plebiscito. Longe de propiciar a tão desejada pacificação social., o anúncio pareceu incendiar ainda mais os ânimos. As mobilizações sociais cresceram, os protestos violentos registraram uma escalada e o descontentamento tomou as redes sociais.

O que deu errado?

Ao que tudo indica, o que ficou evidente foi que a forma é tão importante quanto a substância. Em outras palavras, os críticos do governo não apelavam apenas por uma nova Constituição, mas também questionavam o mecanismo institucional escolhido pelo presidente.

Em um contexto no qual as instituições e agentes políticos enfrentam uma profunda crise de legitimidade e confiança, promover uma reforma constitucional por intermédio do Congresso não parecia ser a alternativa mais sensata.

A escalada dos protestos que surgiu em resposta ao anúncio presidencial surpreendeu o Palácio de la Moneda pela virulência. O governo se viu, então, diante de uma escolha: reforçar a repressão ou ceder.

Tendo em vista as denúncias cada vez mais frequentes de violações dos direitos humanos, intensificar a repressão seria inconveniente politicamente e difícil de defender no plano normativo.

Isso levou diferentes agentes políticos a manifestarem progressivamente sua disposição de considerar mecanismos alternativos para a mudança da Constituição.

Por fim, depois de uma maratona de negociações no Congresso, na madrugada de 15 de novembro surgiu um acordo e os principais líderes da situação e da oposição chegaram a um consenso.

O chamado Acordo pela Paz Social prevê um plebiscito de aplicação compulsória no qual a população decidirá se deseja uma nova Constituição, por um lado, e, por outro, se deseja que esta emane de uma convenção constituinte formada por cidadãos escolhidos por eleição direta ou de uma convenção mista formada em partes iguais pelos parlamentares em exercício e por cidadãos eleito para esse fim.

Para que uma medida seja incluída na nova Constituição, terá de contar com o apoio de dois terços da convenção constituinte. Cabe destacar que se trata de uma nova Constituição e não de uma reforma constitucional, pois a redação do novo texto constitucional principiará sem o uso de qualquer artigo vigente previamente.

Apesar de algumas críticas e da desconfiança de alguns setores, desde que o acordo foi anunciado o nível de mobilização e protestos parece ter caído, se bem que estes não tenham desaparecido completamente.

Parece evidente que nos encontramos diante de um equilíbrio precário e altamente volátil. É indubitável que a saída da atual crise precisa ter natureza política.

Mas, em um cenário de legitimidade tão baixa, o temor de muitos setores mobilizados (que parece ter fundamentos) é o de que os partidos terminem controlando as candidaturas para os assentos da futura convenção constitucional. Também existe quem tema (em minha opinião equivocadamente) que o quórum termine permitindo que uma minoria imponha sua vontade.

 Acordo pela Paz Social é um avanço significativo na direção correta.

Ainda assim, nesse cenário complexo, é necessário fazer todo o possível para dissipar as apreensões daqueles que temem que o processo possa terminar por beneficiar os mais poderosos.

Para que o desenlace dessa crise seja positivo é imprescindível explicar aos cidadãos que o estabelecimento de um quórum de dois terços promoverá a adoção de amplos consensos. É necessário, além disso, adotar estratégias explícitas que propiciem a deliberação e contem com a participação de agentes de fora da política, que confiram maior legitimidade ao processo.

Já existem diversas organizações, e agentes de vários tipos e orientações, que se colocaram à disposição do governo e da oposição para apoiar construtivamente o trabalho que está por vir. Uma solução bem-sucedida desse estouro social requer que o governo e os partidos estejam genuinamente dispostos a convidar mais jogadores a entrar em campo.

Rossana Castiglioni é doutora em ciência política pela Universidade Notre Dame (EUA) e professora associada da Escola de Ciência Política da Universidade Diego Portales (Chile). Foi professora visitante das universidades Harvard e de Oxford e do Kellogg Institute for International Studies.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

Latinoamérica21, tradução de PAULO MIGLIACCI

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