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A difícil história da América Latina se tornou mais difícil ainda

Polarização entre os partidários da esquerda e os oponentes de direita cresceu, e agora está enlaçada com o desprezo racial

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Judith Teichman
Latino América 21

Desde a queda dos preços das matérias-primas em 2013, a América Latina vem testemunhando turbulências políticas crescentes. Surgiram amplos protestos no Chile, Equador e Bolívia.

O período de agitação política do Brasil começou antes, com protestos contra a corrupção, o que levou ao julgamento político e destituição da presidente Dilma Rousseff, seguido pela eleição de um presidente de direita populista, Jair Bolsonaro, que está contribuindo para uma maior polarização política no país.

Independentemente da opinião pessoal sobre se os acontecimentos recentes na Bolívia constituem ou não um golpe militar, a maioria das pessoas aceita que os militares desempenharam papel crucial em remover Evo Morales do poder.

A história latino-americana sofre pela dependência quanto às exportações, inquietação (quando não insurgência) popular, repressão política, governos autoritários e intromissão (quando não intervenção direta) militar.

Supunha-se que a transição para a democracia e a liberalização dos mercados na década de 1980 mitigariam esses desafios. No entanto, a polarização política piorou.

A agitação política atual na América Latina tem como raiz 35 anos de políticas econômicas desatinadas, adotadas principalmente como resposta à crise da dívida internacional do começo da década de 1980.

Por insistência de instituições financeiras internacionais, que defendiam a “sabedoria” convencional da época, foram promovidas reformas de mercado. A região já sofria com uma história difícil de grande desigualdade socioeconômica e instabilidade política, e a globalização econômica, com sua agenda desregulamentadora do mercado, piorou muito esses problemas.

Sob a suposição de que esses países deveriam se aproveitar de suas “vantagens comparativas”, o Consenso de Washington insistiu na eliminação da proteção industrial, na desregulamentação do investimento estrangeiro e na flexibilização dos mercados de trabalho.

A soma total dessa orientação de políticas: desindustrialização, desemprego e aumento do tamanho do setor informal.

A privatização das empresas estatais e os esforços para promover a expansão das exportações produziram concentração de riqueza, já que apenas as maiores empresas nacionais (frequentemente aliada a capitais estrangeiros) tinham condições de aproveitar as novas oportunidades.

Supunha-se que o desaparecimento de empresas nacionais ineficientes seria compensado pelo crescimento econômico e pela geração de novas oportunidades de emprego.

Não foi o que aconteceu. Ao longo da década de 1990, a pobreza diminuiu apenas lentamente, e a desigualdade se tornou mais alta que nunca.

Tudo isso teve profundas consequências políticas.

O poder do empresariado aumentou a partir da década de 1980, à medida que os governos se tornavam dependentes do investimento privado para impulsionar o crescimento econômico, e aumentou o número de empresários que obtinham posições formais de poder dentro do Estado, especialmente indicações para postos ministeriais.

Enquanto isso, a mobilização popular crescia à medida que uma ampla faixa da população se desiludia com os partidos políticos tradicionais.

Em 2009, mais de dois terços dos países da região haviam elegido governos de esquerda. Essas vitórias eleitorais causaram grande consternação entre os empresários e muitos integrantes da classe média, que em muitos casos continuaram a ser opositores implacáveis das novas administrações.

A repentina chegada ao poder de líderes que representavam os pobres urbanos e rurais engendrou fortes sentimentos de insegurança, e até medo, nas classes média e alta. Mesmo assim, as tensões contínuas entre os governos e os interesses empresariais durante os anos 2000 detiveram o investimento privado.

No entanto, porque essas vitórias eleitorais coincidiram com a alta nos preços das matérias-primas e com aumentos substanciais da arrecadação estatal, os governos de esquerda puderam repartir o botim, reduzir a pobreza e (especialmente no caso da Venezuela) adotar uma retórica antiempresarial: o crescimento impulsionado pelas matérias-primas evitava a necessidade de investimento privado.

Mas, quando as balanças comerciais se deterioraram, o déficit fiscal disparou e os governos cortaram os programas sociais.

O medo de erosão do apoio das massas, combinado a uma classe média intransigente e e à oposição da classe alta, provavelmente está na raiz das tendências autoritárias dos regimes de esquerda populistas, sobretudo na Venezuela, mas também na Bolívia.

No Chile, Brasil e Argentina, as recessões econômicas precipitaram a eleição de governos de direita, acontecimentos eleitorais que imediatamente provocaram crescente insatisfação entre os setores socioeconômicos mais baixos, devido a cortes nos programas que beneficiavam os pobres e aos aumentos de preços, o que resultou em aumento no custo dos produtos básicos.

No caso do Chile, cabe recordar que o atual governo direitista de Sebastián Piñera enfrentou os protestos (que pediam por uma nova Constituição e pelo fim da desigualdade) recorrendo a soldados e tanques, a primeira vez em que um governo reage dessa maneira no país desde seu retorno ao governo civil e à democracia.

A difícil história da América Latina se tornou mais difícil ainda, agora.

A polarização entre os partidários prévios da esquerda política e seus oponentes de direita cresceu, e agora está enlaçada com o desprezo racial.

Ainda que as políticas econômicas anteriores à década de 1980 deixassem muito a desejar, a adesão ideológica à eficácia do mercado cegou os lideres quanto aos fatos: que uma vantagem comparativa pode ser criada.

O que era preciso era uma estratégia orientada à expansão das atividades produtivas e das oportunidades de emprego. Em lugar disso, a fé no mercado deixou a região dependente dos vaivéns da demanda internacional por matérias-primas e exposta aos problemas políticos derivados essa dependência.

Judith Teichman é professora de ciência política e desenvolvimento internacional na Universidade de Toronto. Membro da Royal Society of Canada, é autora de livros e artigos sobre política e formulação de políticas na América Latina.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

Tradução de Paulo Migliacci

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