Francisco é o papa que mais usa decretos para tomar decisões

Papado atual é recordista, na média, de motu proprios; instrumento expõe face centralizadora

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Edison Veiga
Bled (Eslovênia)

Em seu sexto ano de pontificado, Francisco já expediu mais motu proprios (espécie de decreto papal) que os antecessores Bento 16 e João Paulo 2º.

Para especialistas, isso demonstra a grande reforma pela qual passa a cúria romana. Por outro lado, é sinal de que, se sabe ouvir e delegar funções em temas contemporâneos, na hora de definir o que julga necessário ele mantém posição centralizadora e autoritária.

Para um vaticanista italiano ouvido pela Folha, o papa é, em última instância, um monarca teocrático absolutista. Desta forma, afirma, Francisco sabe o poder de sua caneta e, quando acredita ser o certo, age conforme sua vontade.

papa fala a cardeais
Papa Francisco fala a cardeais em reunião no Palácio Apostólico, no Vaticano  - Vatican Media/Reuters

Motu proprio é um dos documentos normativos da Igreja. A expressão latina significa “de sua própria iniciativa”. Tem duas implicações, portanto: é uma norma que foi decidida exclusivamente pelo papa, sem interferência de uma comissão ou um cardeal; e se trata de um documento expedido sem necessidade de responder a uma determinada situação.

Até agora, Francisco já expediu 31 motu proprios. Seu antecessor, Bento 16, publicou 13 em seu pontificado —de 2005 a 2013. Nos mais de 26 anos em que comandou a Igreja Católica, João Paulo 2º decretou 29 motu proprios.

Na história recente do Vaticano, em números absolutos Francisco só está atrás de Paulo 6º —47 motu proprios expedidos entre 1963 e 1978— e Pio 10º —33 documentos, de 1903 a 1914. Considerando o tempo de pontificado, a média de Francisco é maior.

Quanto ao conteúdo, a maior parte dos decretos serve para reorganizar a cúria romana. O mais recente, de 22 de outubro, mudou o nome dos arquivos da Igreja —de Arquivo Secreto Vaticano para Arquivo Apostólico Vaticano.

Foi por motu proprio também que Francisco determinou o novo estatuto financeiro, em novembro de 2013, e criou mecanismos para combater lavagem de dinheiro na cúpula da Igreja, em agosto daquele ano.
Há outros decretos para reestruturar os organismos financeiros do Vaticano.

O pontífice também utilizou o mecanismo para alterar pontos do direito canônico. É o caso do motu proprio que facilitou os trâmites para anulação de matrimônios, publicado em agosto de 2015.

 “Francisco se equilibra bem entre sinodalidade e participação colegiada dos bispos, mas é bem cioso de sua função como bispo de Roma para reformar a Igreja nesta virada da história”, afirma o teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Junior, professor do Departamento de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. “É uma no cravo, outra na ferradura. Descentralizar e organizar a reforma.”

“As constituições que Francisco promulgou dão esse espírito da mudança, e os motu proprios, o formato executivo para que a inércia curial e burocrática não acabe por paralisar o sopro do Espírito Santo”, declara Altemeyer.

Outro observador brasileiro enfatiza que uma época de mudanças exige mais iniciativas autocráticas do que um período normal.

Para ele, só alguém que não quer olhar a realidade poderia acreditar que um cardeal formado na escola do caudilhismo latino-americano seria mais democrático do que outro formado na academia europeia pós-nazismo.

Consultor do Vaticano, o padre jesuíta norte-americano James Martin relativiza o alto número de motu proprios de Francisco.

“Isso pode simplesmente refletir o fato de que ele prefira usar motu proprios em vez de produzir algo tão pesado quanto uma encíclica”, afirma. Encíclicas são cartas papais dirigidas a bispos de todo o mundo, contendo orientações. Francisco já publicou duas: Lumen Fidei, em 2013 —que havia sido iniciada por seu antecessor, Bento 16— e Laudato Si’, em 2015.

Martin ressalta que, a despeito do que os motu proprios sugerem, Francisco promove a descentralização da Igreja. “Sua revigoração dos sínodos mostra como ele está comprometido com a descentralização da Igreja e com a incorporação do discernimento coletivo no processo de tomada de decisões do Vaticano. A nomeação de cardeais, quando Francisco seleciona cada vez mais aqueles que estão distantes da Itália e da Europa, é outro sinal dessa descentralização”, declara.

“No caso de Francisco, não acho que a grande quantidade de motu proprios signifique centralização. Creio que a intenção seja desburocratizar mesmo”, afirma o padre José Ferreira Filho, da Arquidiocese de São Paulo.

As reformas conduzidas pelo pontífice têm alimentado uma forte oposição vinda de setores do cardinalato, conforme já apontou, em diversas entrevistas, o vaticanista britânico Austen Ivereigh, autor do livro "The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope" (o grande reformista: Francisco e a construção de um papa radical, em tradução livre).

Em 2016, um grupo de cardeais manifestou-se publicamente afirmando que Francisco causava confusão em temas cruciais da doutrina católica. No ano passado, em um dos momentos mais tensos, o arcebispo italiano Carlo Maria Viganò publicou uma carta na qual pedia a renúncia do papa.

 
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.