Nigeriano conta histórias da tradição oral africana para brasileiros

“Onde estão escritas essas histórias que você conta?” A pergunta que mudou a vida do nigeriano Ikechukwu Sunday Nkeechi, 45, foi feita por uma amiga bibliotecária do Recife, onde ele morava.

As histórias às quais ela se referia eram contos tradicionais que Sunday cresceu escutando à beira da fogueira ou à luz da lua em seu vilarejo sem luz elétrica no sul da Nigéria, contadas pelas matriarcas da família. Ele pensou um pouco e respondeu: “Acho que não estão escritas em nenhum lugar. Estão só na minha 'caixola'”, lembra. 

​Sunny, como é conhecido, chegou ao Brasil em 1998. Cinco anos depois, começou a frequentar essa biblioteca na capital pernambucana para treinar seu português por meio dos livros.

Mesmo sem jeito por não dominar o idioma, começou a participar de sessões de contação de histórias no local. Foi aí que a bibliotecária incentivou-o a colocar no papel essas histórias da tradição oral de seu país. “Eu achava que seria impossível. Eu mal falava a língua portuguesa, imagina escrever”, conta o nigeriano.

Três anos depois, em 2006, saiu seu primeiro livro, “Ulomma: a Casa da Beleza e Outros Contos”, pela editora Paulinas, hoje na 5ª edição. Desde então, ele já lançou outras quatro obras infantojuvenis próprias e participou de uma coletânea pelo mesmo selo.

Também se tornou contador de histórias profissional e viaja o Brasil participando de eventos, apresentando-se em escolas e dando cursos para alunos de pedagogia e letras em universidades.

No início, ficou impressionado quando soube que contar histórias pode ser uma profissão. “Perguntei: ‘É mesmo? Alguém se disporia a pagar para ouvir histórias?’ Comecei a pesquisar e a participar de oficinas, e encontrei muitos bons profissionais”, relata. “No começo, fiquei acanhado, pensando: 'Será que eles vão me entender?' Mas cada contador tem seu jeito, sua originalidade. Vi que poderia fazer isso.” 

Sunny é do grupo étnico dos igbo, o terceiro mais numeroso da Nigéria, e teve a infância povoada pelas histórias da mãe, do pai e especialmente da avó, para quem “qualquer momento era momento de história”.  

“Nossa casa não era repleta de livros, mas as histórias contadas preenchiam esse lugar”, diz. “Quando anoitecia, fazíamos uma reunião de família para contar esses contos, dançar e cantar. Nas noites frias, a gente acendia uma fogueira e assava milho e uma fruta chamada ube. Quando você percebia, tinha 30, 50 pessoas em volta, porque a família é grande e todos moravam perto.”

Ele diz que a avó tinha "uma história para cada momento". "Eu brinco que ela não batia na gente, mas a gente apanhava das histórias dela. Por exemplo, teve um dia que fiquei bravo porque meu pai me bateu por eu ter rasgado uma blusa brincando. Corri para a casa da minha avó dizendo que não queria mais morar com ele. Ela não disse nada, mas me contou uma história que me fez entender que eu também estava errado. Pedi perdão para meu pai, ele também me pediu desculpa. E a paz reinou.” 

Foi também na infância que Sunny se interessou pelo Brasil. Jogando bafo com os amigos, viu uma carta que mostrava o jogador Pelé e ficou impressionado "de ver que um negro poderia ser famoso no mundo todo". “Passei a querer ser igual a ele, aquela coisa da representatividade”, diz.

"E perguntei para minha mãe: 'Mas existem negros fora da África?' Ela me contou como muitos irmãos africanos foram sequestrados e trazidos para o outro lado do oceano. Isso me chocou. Desde então eu queria vir conhecer o Brasil, essas pessoas.”

Já adulto, chegou ao novo país sem conhecer ninguém. Trabalhou lavando panelas em restaurantes, até que se tornou garçom e depois maître de estabelecimentos conhecidos de São Paulo. Com o salário, pagava o curso de letras em uma universidade privada. Como tinha cursado educação física na Nigéria, também deu aulas em academias brasileiras. 

Depois do primeiro livro, Sunny lançou “Contos da Lua e da Beleza Perdida” (2008) e “As Aventuras de Torty, a Tartaruga” (2012). Em seguida veio “O Natal de Nkem” (2014), que é a história de como o Natal chegou até a África, que ele ouviu da mãe. A última publicação foi na coletânea “Amores em África” (2017).

O escritor está casado há 17 anos com uma brasileira, com quem tem três filhos. Todos têm nomes brasileiros e igbo —que costumam ter um significado. O primeiro nome de Sunny, por exemplo, Ikechukwu, quer dizer “poder de Deus”. O último, Nkeechi, “amanhã será melhor”.

O do meio, Sunday (domingo em inglês), faz parte de um costume de seu povo de batizar os filhos com o dia da semana em que nasceram —antes da colonização, com a palavra em igbo; depois, em inglês.

Atualmente, Sunny mora em Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo. Ele deu a entrevista em um de seus lugares favoritos: a biblioteca do Centro de Formação Cultural do bairro. 

Professor de inglês, ele está tentando renovar o contrato em uma escola pública e também dá aulas particulares, paralelamente às atividades de contação de histórias. Tem alguns livros engatilhados que pensa em publicar, incluindo dois romances adultos.

Mais que um escritor, ele se considera um “recontador de histórias”. E acredita que as crianças brasileiras se beneficiariam se conhecessem mais os contos africanos.

“Percebi que falta muito de história da África nas escolas e que 99,9% dos livros não têm personagens negros. Isso vai fazendo com que as crianças negras não se enxerguem dentro da escola. Imagina você nunca ver alguém que se parece com você na TV. Você não vai nem querer ser jornalista. Isso vale para todas as profissões, vale para a vida.”