Descrição de chapéu The New York Times

Cafés revolucionam Arábia Saudita ao permitir convívio entres mulheres e homens

Espaços se anteciparam às mudanças na lei do país, que antes exigia que restaurantes fossem divididos por gênero

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Vivian Yee
Riad (Arábia Saudita) | The New York Times

Para ter uma ideia melhor sobre o momento surpreendente vivido na Arábia Saudita, onde os ultraconservadores códigos sociais e religiosos que microadministram o cotidiano das pessoas parecem sofrer um novo revés a cada mês (mulheres conduzindo carros! Cinemas! Usher a Akon apresentando seu rap em recintos lotados!), vale a pena de vez em quando ler as resenhas de cafeterias especializadas postadas no Google Maps.

“Visitei este lugar e foi um choque total!”, enfureceu-se online recentemente Tarak Alhamood, falando da cafeteria Nabt Fenjan, em Riad. “VOCÊS ESTÃO VIOLANDO as normas deste país. Espero que esse café seja fechado para sempre.”

O problema não estava no matcha gelado ou nos cafés “flat white” servidos pelo estabelecimento (bons, na opinião de outros frequentadores), nem nas opções de leite não-animal (apreciadas), no bolo de chocolate (imperdível) ou nos preços (não tão populares).

A questão era uma decisão que fez do Nabt Fenjan um exemplo ousado da nova Riad: aberta inicialmente apenas para mulheres, no final de 2018 a cafeteria começou a aceitar a presença de homens e mulheres juntos.

A iniciativa levou a cafeteria a adiantar-se às leis da Arábia Saudita, país onde, por uma questão de direito e de praxe, a maioria dos restaurantes e cafés se divide em seções ditas para solteiros —apenas homens—e outras para famílias, isto é, mulheres e grupos familiares. Os homens entram por portas separadas e pagam em filas separadas; as mulheres às vezes comem atrás de divisórias, para proteger sua privacidade dos olhares de homens desconhecidos.

Mas no início de dezembro o governo anunciou que empresas não terão mais a obrigação de segregar seus fregueses. Trata-se da expansão mais recente das reformas sociais lançadas pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o governante “de facto” do país.

Mesmo assim, o Nabt Fenjan está longe de ser o único estabelecimento saudita que nos últimos anos foi discretamente eliminando as seções separadas, processo que começou quando o príncipe herdeiro enfraqueceu a polícia religiosa, que no passado implementava as normas sociais. E a casa não foi o único estabelecimento a crescer em parte graças a isso.

“Acho que a razão por que as cafeterias ganharam tanta popularidade é que as pessoas estão mais abertas às transformações”, comentou Shaden Alkhalifah, 30 anos, que numa noite recente estava estudando no Draft Café, em Riad.

“Tem algo a ver com o diálogo político atual”, ela comentou. E, quem sabe, também com os muitos sauditas que estudaram no exterior, em cidades com fetiche por café de origem única.

Apesar da crítica negativa ao Nabt Fenjan postada por Alhamood no Google, mesmo os tradicionalistas estão começando a aceitar a flexibilização generalizada em curso nas cidades maiores, embora isso ainda não tenha chegado às cidades menores ou à zona rural.

Algumas mulheres cujas famílias antes só as deixariam trabalhar em recintos fechados, como escritórios (se é que as deixavam trabalhar, em primeiro lugar), hoje têm empregos de baristas. Os sauditas hoje podem conviver com pessoas do sexo oposto não apenas em casa, mas no cinema, em concertos e até mesmo em eventos de luta livre. Jovens empreendedores andam abrindo estabelecimentos onde sauditas podem conhecer e encontrar-se com pessoas de ambos os sexos que têm gostos semelhantes aos seus, quer sejam artistas, cineastas ou empreendedores.

A clientela nessas cafeterias é sobretudo jovem, refletindo um país onde dois terços da população têm menos de 30 anos e uma parcela desconhecida sofre de tédio crônico. Bares são proibidos; concertos e cinema estão apenas começando a estar ao alcance de muitos. Assim, as saídas à noite tendem a ainda girar em torno de comida e bebida (não alcoólica). Quanto mais instagramável, melhor.

Durante algum tempo se viram hamburguerias chiques por todo lado. Barracas de comida tiveram seu momento, que foi longo. As redes sociais alimentavam as tendências sucessivas.

“É porque não temos nada para fazer”, explicou Abdulrahman, motorista de Uber em Riad que informou apenas seu primeiro nome. “Estas cafeterias, mais nada.”

Algo que está se tornando aceitável em Riad ainda é visto como excessivamente ousado nas cidades sauditas menores. Mas transformações estão a caminho.

Depois de fazer amizade com uma mulher nas redes sociais, Ziyad Abdulrahman, 26 anos, professor assistente em uma universidade islâmica na cidade sagrada de Medina, a conheceu pessoalmente em um restaurante em Riad há pouco tempo. Foi a primeira vez que ele esteve sozinho com uma mulher em público.

“Não houve o menor problema”, ele disse. “Na realidade, eu até demorei um pouco a fazer isso. As pessoas estão mudando.”

A maioria das cafeterias ainda é segregada por gênero. Mas muitas possuem outras atrações: máquinas de preparar café importadas do Japão, tortas instagramáveis e –algo menos palpável, mas necessário ainda assim— energia positiva.

Virtualmente nenhuma delas oferece o café árabe dourado, infundido com cardamomo, apresentado numa cafeteira curva, servido em xícaras delicadas e acompanhado de um montinho de tâmaras –um marco tradicional da cultura do café saudita.

Em vez disso, na cafeteria Draft, que separa os homens solteiros das “famílias”, há saladas de quinoa e mesas de madeira clara iluminadas por lâmpadas de estilo industrial. E no Medd Café, em Jiddah, cidade à beira do mar Vermelho onde as normas sociais há anos são menos rígidas que em outras partes do país, as sementes orgânicas, compradas pelas regras do comércio justo, são torradas no próprio estabelecimento.

Numa noite recente de sexta-feira no Medd Café, o pátio ao ar livre estava lotado de homens e mulheres jovens. Muitas das mulheres traziam os cabelos descobertos e suas abayas abertas por cima de jeans e tênis, usadas mais como casacos longos e soltos que como a tradicional túnica que cobre tudo.

Mas Riad é mais convencional que Jiddah. Foi só depois de muita discussão interna que a cafeteria Kanakah, de Riad, que passou três anos como estabelecimento que se orgulhava de atender apenas a mulheres, foi reaberta no ano passado como espaço misto. As pessoas entram pelas mesmas portas, esperam nas mesmas filas e fazem seus pedidos a baristas de ambos os sexos.

Khawater Alismaeel, a proprietária da Kanakah, havia notado que homens e mulheres estavam trabalhando lado a lado publicamente em algumas outras empresas. Já que não era explicitamente proibido, ela decidiu tentar fazer o mesmo.

“Eu quis provar que era capaz de fazer tudo sozinha, tendo apenas mulheres como funcionárias”, disse Alismaeel, 23 anos, que abriu a Kanakah aos 19 anos, com ajuda de sua família. “Agora estamos comprovando que homens e mulheres conseguem trabalhar lado a lado.”

A mudança afastou algumas freguesas que preferiam o modo de funcionamento antigo. Outras ficaram escandalizadas, convencidas de que o café se tornara, conforme a crítica de uma pessoa, “um local de namoro de rapazes e moças”.

A reação doeu, disse Alismaeel.

Mas ela buscava uma visão mais ampla e inclusiva: não apenas mulheres trabalhando lado a lado com homens, mas também mulheres que usam o niqab, o véu que deixa apenas os olhos à vista, trabalhando ao lado de mulheres com a cabeça exposta.

As mudanças vêm se sucedendo tão rapidamente que hoje, quatro meses depois, Alismaeel ainda não sabe ao certo se os regulamentos a proíbem de empregar baristas mulheres ao lado de homens. Um fiscal municipal visitou o café depois de um freguês ter denunciado a situação, mas não fez nada.

“Sinto que tenho sorte por fazer parte desta geração”, disse Alismaeel. “Mesmo cinco anos atrás, isto não teria sido viável.”

Ainda é possível que tudo volte para trás. Tala Alzaid, 19 anos, é barista no Kanakah. Ela trabalhava com uma equipe exclusivamente feminina em outra cafeteria (“aquela história toda de as mulheres ficarem em casa está totalmente superada”, ela comentou), mas as mulheres foram demitidas sumariamente em agosto, depois de um freguês prestar queixa ao governo.

“E a igualdade de direitos, como fica?”, ela disse. “Por que fui demitida quando não estava fazendo nada de errado? O governo propõe igualdade, mas na cabeça dos cidadãos as coisas não são tão iguais assim.”

Com o apoio de sua família, Alzaid abraçou a ideia de trabalhar com homens. “Quando não é assim, é um tédio”, comentou. “A geração mais jovem aceita as mudanças. O problema está nas pessoas mais velhas.” 

Os jovens também têm suas exigências próprias. Dando ouvidos a outra reclamação aventada nas resenhas online, Alismaeel pretende lançar mais opções sustentáveis e veganas em seu café.

Shatha Zayd escreveu em dezembro: “Antes eles serviam sobremesas veganas e feitas com leite vegetal, mas agora não têm mais. ATUALIZEM-SE! O MUNDO ESTÁ MUDANDO.”

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