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Conflito ajuda Irã a desgastar influência americana na região

Assassinato de Suleimani é respondido com cautela estratégica por Teerã

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Arlene Clemesha

Muitos ainda se perguntam por que Trump ordenou o assassinato de Qassim Suleimani, inaugurando uma nova fase nas relações EUA-Irã, com a passagem da estratégia de “máxima tensão” via pressão econômica para o confronto militar direto —contrariando promessas de campanha, levando ao deslocamento de outros 3.000 soldados para o Iraque e pondo em risco sua própria reeleição. 

Além disso, sem garantias de que a ação irá dissuadir as milícias xiitas do Iraque —nem sempre controláveis pelo Irã— de seguir atacando as bases americanas em seu país.

mulher com foto na mão
Mulher segura foto do aiatolá Khomeini durante evento religioso - Nazanin Tabatabaee - 22.nov.19/Reuters

Suleimani era chefe da Força Quds (em menção a Jerusalém) da temida Guarda Revolucionária iraniana, veterano da guerra Irã-Iraque e responsável pela estratégia regional e apoio a milícias xiitas pró-iranianas no Oriente Médio. 

Era igualmente responsável por crimes de guerra na Síria, notadamente Alepo, e pela repressão a manifestações populares no Irã e no Iraque no final de 2019. Era, ao mesmo tempo, e por obra da típica complexidade política e simbólica da região, figura carismática e popular, visto como um dos grandes combatentes contra o extremismo sunita e peça chave na consolidação do poder e da segurança xiita no Oriente Médio.

Seu assassinato se insere no contexto da disputa entre EUA e Irã pelo controle do Iraque pós-Saddam Hussein, uma vez praticamente eliminada a ameaça do Daesh.

Para Trump, a contenção da influência regional iraniana faz parte de seu proclamado desejo de mudança de regime naquele país. Mas toda vez que os americanos se aventuraram a buscar essa mudança pela via militar no Oriente Médio, os resultados foram tão catastróficos quanto mal calculados.

Até o início dos anos 2000, o Irã estava rodeado por forças sunitas hostis: a leste, o eixo Taleban-Paquistão-Arábia Saudita, e, a oeste, o Iraque de Saddam Hussein. A ocupação do Afeganistão (2001) e a derrubada de Saddam (2003) pelos EUA abriram caminho de forma inédita para a expansão da influência iraniana na área.

Os mais acirrados defensores do regime de Ali Khamenei, como Suleimani, veem a consolidação de um governo xiita no Iraque como meta estratégica. Aquilo que não puderam obter na guerra Irã-Iraque alcançaram através da reconfiguração do Oriente Médio liderada pelos EUA desde a “guerra ao terror” lançada por George W. Bush.

​Influência esta que o Irã buscou assegurar por duas vias. Primeiro, pelo avanço do seu programa nuclear, cujo objetivo primordial nunca foi atacar Israel, como a retórica das lideranças conservadoras da revolução iraniana poderia insinuar, mas contrabalançar o poderio nuclear do Paquistão e, assim, a ameaça do eixo sunita em seus arredores. 

Segundo, através do apoio, armamento e financiamento de milícias xiitas, desde a Brigada Badr e o Exército Mahdi no Iraque, o chamado Exército de Muhammad (Sipah-i Muhammad) no Paquistão, o Hizbullah no Líbano, todos eles apoiados pela Guarda Revolucionária do Irã, ela mesma originada das milícias que apoiaram a revolução islâmica em 1978-1979.

Hoje, é inegável que a revolução islâmica está internamente desgastada, fruto das contradições entre suas alas democratizantes e autoritárias, para não mencionar a crise econômica e o desejo de maior liberdade da maioria da população, nascida após 1979. Tal desgaste se expressa inclusive no Iraque, na má fama de corrupção da classe clerical iraniana.

Isso não contradiz o ressurgimento regional xiita, do Irã ao Iraque e além. Trata-se de uma influência facilmente explicável, pois segue as linhas dos próprios movimentos populacionais xiitas, de cidadãos comuns bem como estudiosos, clérigos e toda a gama de “ulama” que transita de Qom, no Irã, para Najaf e Karbala, no Iraque, e vice-versa. 

O Irã sabe que cedo ou tarde os EUA terão que sair do Iraque e de nada adianta iniciar uma guerra contra a potência mundial. Mas desgastar seus aliados no Oriente Médio é parte do objetivo de Teerã na região, para assegurar as posições recém-assumidas.

Isso não significa o surgimento de um movimento pan-xiita. Pelo contrário, os grupos aliados do Irã se expressam em chaves nacionais muito claras, seja no Líbano, no Bahrein, no Iêmen ou no Iraque. 

Assim, o assassinato de Suleimani pode ter eliminado um homem poderoso e estrategista considerado brilhante, mas fortaleceu os conservadores no Irã, desviou a atenção dos problemas internos do regime, justificou suas posturas mais belicistas e autoritárias.

Regionalmente, a ampla indignação causada pelo ato arrogante de Trump já levou o parlamento iraquiano a posicionar-se pela total retirada das forças norte-americanas. O incremento das sanções, por sua vez, reforça a ala daqueles que veem a retomada do programa nuclear iraniano como a melhor garantia que o país tem de assegurar sua posição regional e impedir a reversão de seus ganhos estratégicos acumulados desde 2001.

Arlene Clemesha

Professora de história árabe da USP, tradutora de Edward Said e autora de "Marxismo e Judaísmo" (Boitempo), "Palestina 48-08" (Teerã: DEFC) e "O Brasil e o Oriente Médio: O Poder da Sociedade Civil" (co-org.)

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