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Culto à personalidade de Xi Jinping me fez cético sobre a China

Linha dura de dirigente tem efeitos negativos no país e no exterior

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Gideon Rachman
Financial Times

Visitei a China pela primeira vez no início dos anos 1990, e a transformação vivida pelo país desde então ainda é fonte de espanto. A riqueza, o poder e o prestígio da China vêm crescendo com a mesma rapidez com que novos arranha-céus se elevam no horizonte de Xangai.

Ao longo desse período sempre houve céticos que previram que o milagre chinês estava prestes a terminar. Livros com títulos como “The Coming Collapse of China” (o colapso próximo da China, publicado em 2001) saíram em intervalos regulares e foram desmentidos, também regularmente. Minha própria visão sempre foi que a ascensão da China é real, que ela vai continuar e vai transformar o mundo. Cheguei a escrever um livro sobre isso, intitulado “Easternization” (orientalização).

Mas estou começando a ter dúvidas. Não porque a economia chinesa esteja crescendo ao ritmo mais lento dos últimos quase 30 anos, embora isso esteja acontecendo. Tampouco é por causa da rebelião em Hong Kong —se bem que isso também faz parte do problema. A razão fundamental de meu ceticismo crescente é o surgimento de um culto à personalidade em torno do presidente Xi Jinping.

Xi Jinping visita centro de exposições na província de Yunnan, sudoeste do país - Xinhua - 20.jan.20/Xie Huanchi

Após o desastre do maoísmo, os líderes chineses fizeram esforços resolutos para afastar-se dos cultos à personalidade e buscar um estilo de liderança mais coletivo. Foram traçados limites aos mandatos presidenciais.

Deng Xiaoping, que colocou a China no caminho de seu milagre econômico, abandonou a ideia de que toda a sabedoria podia ser encontrada no “livrinho vermelho” de Mao, prometendo, em vez disso, “buscar a verdade a partir dos fatos”. Seu pragmatismo permitiu ao Partido Comunista chinês abraçar o capitalismo e abrir a economia nacional aos investimentos do exterior e ao empreendedorismo doméstico.

Sob Xi Jinping, porém, os limites à Presidência foram abolidos. O “pensamento de Xi Jinping” foi inscrito na Constituição, e membros do partido, estudantes e funcionários públicos são obrigados a estudá-lo regularmente. Outdoors citando a sabedoria de Xi se espalham pelas ruas da cidade. Em Xangai, há até cartazes de Xi com raios de luz emergindo de sua cabeça.

Os partidários de Xi dizem que sua “liderança forte” lhe permitiu combater a corrupção, promover uma limpeza do meio ambiente e conduzir o país numa guerra comercial iniciada pelos EUA. Eles observam que, nos últimos 40 anos, a China vem comprovando constantemente que o governo de partido único é compatível com crescimento econômico acelerado.

Só que a era de Xi está se parecendo cada vez mais com um governo de um homem único, não de um partido único. E é difícil pensar em muitos países —desde a Romênia de Ceausescu até a Rússia de Stalin — onde isso tenha dado certo. (Vale notar que Xi não rejeitaria comparações com Stalin: pelo contrário, ele incentiva seus seguidores a continuar a aprender com os ensinamentos de Stalin e Lenin, além de Mao.)

Um culto à personalidade eleva a probabilidade de serem adotadas políticas prejudiciais, na medida em que assessores assustados e bajuladores dizem ao grande homem aquilo que ele quer ouvir, ao invés do que está acontecendo de fato. Há sinais de que isso já está ocorrendo.

A decisão revoltante de encarcerar mais de 1 milhão de muçulmanos uigures em Xinjiang para “reeducá-los” é um desastre de relações públicas. É também o tipo de política que provavelmente vai provocar a rejeição e a hostilidade de toda uma geração, intensificando com isso os problemas de separatismo e terrorismo que visa resolver.

Xi Jinping agora também enfrenta uma Hong Kong em estado de revolta declarada. Mesmo figuras pró-Pequim no território estão frustradas com a impossibilidade de persuadir Xi a adotar uma abordagem mais flexível e questionam se seus conselhos chegam até a mesa dele. Alguns temem que Pequim acredite em sua propaganda política: que os problemas de Hong Kong são fruto de agitação semeada por forças estrangeiras hostis.

A história é semelhante em Taiwan, onde a exigência opressora de “reunificação” com a China continental teve efeito inverso ao desejado, ajudando a presidente Tsai Ing-wen, detestada por Pequim, a ser reeleita recentemente com uma vitória esmagadora.

As situações internacional e econômica também revelam sinais de um “efeito Xi” negativo. Para sermos justos com o presidente chinês, o presidente americano Donald Trump provavelmente teria lançado uma guerra comercial de qualquer maneira. Mas as medidas intransigentes do governo Xi, em casa e no exterior, levaram ao distanciamento de potenciais aliados. Em parte em decorrência disso, a China de Xi se viu rotulada pela União Europeia como “rival sistêmica”.

 

Em casa, reformistas econômicos se preocupam com a ênfase crescente sobre o papel do Estado na economia, temendo que isso possa sufocar o empreendedorismo. Um acadêmico destacado de Pequim diz: “Estamos vivendo em um Estado cada vez mais totalitário”.

Mas qualquer relato justo também precisa reconhecer que Xi pode se gabar de algumas vitórias. O fortalecimento militar contínuo do país e a extensão de sua diplomacia modificaram o equilíbrio de poder na Ásia. Empresas chinesas lideram o mundo nas áreas de comércio eletrônico e comunicações em 5G. Parece que o Reino Unido pode divergir da posição dos EUA e adotar a tecnologia 5G da empresa chinesa Huawei.

Não há sinais reais de revolta política doméstica. Pelo contrário, a vigilância crescente do Estado –realizada através de inteligência artificial, smartphones e tecnologia de reconhecimento facial— está fortalecendo o domínio do partido sobre a sociedade.

Assim, ainda é possível que eu seja apenas o mais recente em uma longa sucessão de céticos ocidentais que se equivocaram sobre a China. Mas é difícil olhar para o culto a Xi e não ter um presságio sombrio.

Gideon Rachman é comentarista de assuntos internacionais do Financial Times. Tradução de Clara Allain. 

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