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EUA e Irã podem cantar vitória, mas crise está longe de acabar

Ataque moderado levou ao comedimento de Trump, embora crise nuclear fique em aberto

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São Paulo

Como parecia previsível na noite de terça (7), o inédito ataque iraniano a forças dos EUA no Iraque foi desenhado para dar um fim ao estágio atual da crise entre Washington e Teerã. Ambos os lados podem cantar vitória agora, mas o passivo de riscos não é desprezível, e o próximo embate está contratado.

Isso se ninguém resolver dobrar a aposta e retomar o confronto direto, o que não seria racional, ou se não houver algum erro de percurso, como um ataque de milicianos pró-Irã contra americanos no Iraque.

Com chefes militares atrás, Donald Trump faz pronunciamento sobre ataque do Irã
Com chefes militares atrás, Donald Trump faz pronunciamento sobre ataque do Irã - Kevin Lamarque/Reuters

O presidente Donald Trump pode dizer que matou o que considera o "maior terrorista do mundo". Já o aiatolá Ali Khamenei tem o trunfo de ter atacado diretamente forças americanas e não ter recebido nada além de ameaças de sanções em troca. Em ambos os casos, há exagero e cálculo.

Trump foi cauteloso ao dizer que o Irã estava recuando suas forças, exatamente o que havia sido anunciado pela república islâmica na noite anterior, mas não disse o mesmo sobre as suas.

Buscou assim evitar a pecha de covarde ou acuado, que facilmente lhe será pespegada nas ruas de Teerã e provavelmente em algumas cidades americanas. Foi o possível para quem enfrenta um processo de impeachment e uma eleição no fim deste ano.

Foi então direto ao assunto: mais sanções, algo com que o regime iraniano já convive há muito tempo, para "mudar o comportamento" do país persa.

O ponto é que isso é muito difícil. A existência da possibilidade de obter a bomba atômica, aquela que Trump fez questão de reafirmar que não permitiria existir no Irã, é central para a estratégia de sobrevivência do regime dos aiatolás.

Após o assassinato do general Qassim Suleimani pelos EUA, na semana passada, o Irã moveu as peças ao retirar-se na prática do acordo nuclear de 2015, costurado por Barack Obama, Vladimir Putin, Xi Jinping e os europeus.

O acerto embutia uma armadilha para EUA e aliados, como sempre denunciou Trump antes de deixá-lo, em 2018. Enquanto ganhava tempo dizendo que não faria a bomba atômica, Teerã saiu das cordas econômicas e aumentou significativamente sua atuação como líder regional, alimentando o chamado "crescente xiita" de aliados na região que produz boa parte do petróleo consumido no mundo.

Resultado: ações militantes, o bloqueio sunita ao Qatar, a guerra no Iêmen a opor rebeldes xiitas à Arábia Saudita, a verdadeira rival do Irã na região.

O fim da escaramuça abre espaço novamente para a diplomacia, mas ela hoje está interditada entre os dois países. Caberá aos intermediários de sempre buscar alguma acomodação, mas é um filme antigo: sanções, ameaças, tensões renovadas.

Ainda assim, é um desfecho bom para todos os sobreviventes, o que não inclui Suleimani, chamado de "maior terrorista do mundo" por Trump. Seu assassinato por um ataque de drone americano permanecerá um espinho na péssima relação entre os países.

O inusitado comedimento de Trump, conhecido por seus arroubos que incluíram a decisão de mandar matar Suleimani, foi uma resposta à precisão da mensagem enviada pelo Irã.

Resumidamente, os iranianos quiseram dizer: "Não podemos deixar de responder pela morte de Suleimani, mas nosso ataque será simbólico". Como? Agindo por conta própria, com mísseis que demonstram seu poderio regional e sem causar estragos significativos —provavelmente por sistemas de guiagem melhorados de suas armas.

Se a ação houvesse matado americanos, certamente a discussão agora seria outra.

Mais cedo, o líder supremo do Irã, Khamenei, havia proclamado sua vitória ao dizer que seu país esbofeteara os EUA. A terminologia é correta.

Do ponto de vista de proporcionalidade, conceito militar segundo o qual uma agressão pode ser respondida na mesma medida por uma reação, é possível argumentar que o Irã deu uma duríssima resposta à morte do general Suleimani.

Não há registro de Estado nacional trocando tiros com os Estados Unidos desde o conflito no Iraque em 2003 —e, no caso, era a reação a uma invasão, considere-a legítima ou não. Quando os EUA foram atingidos antes pelo Irã, o foram por meio de seus prepostos na região.

Por outro lado, a Guarda Revolucionária leal a Suleimani é conhecida por retaliações mais pesadas, com o tradicional uso de terceiros e ao longo do tempo. Isso faz com que as primeiras manifestações após o ataque, falando em "primeiro passo", tenham de ser analisadas aos poucos.

Assim como Trump, Khamenei também pode portanto dizer que venceu o round. Ninguém queria um conflito aberto: o Irã poderia ser obliterado a custos horrendos, que cairiam também na conta de Trump. A batalha segue, contudo.

Há sempre uma questão na linha ovo e galinha nessas crises, o que não facilita sua compreensão. Mas quem começou a atual?

É fácil culpar Trump, dado que o presidente americano deixou o acordo nuclear de 2015 no ano passado, o que levou à escalada de agressões de um cada vez mais arisco Irã. Além disso, seu caráter mercurial, dado a ameaças tão bombásticas como seus recuos, tornam o americano um inconfiável ator internacional.

O país persa, por sua vez, viu o dedo americano em protestos de rua contra o seu regime no Líbano, no Iraque e, principalmente, em centenas de cidades em seu próprio território, o que levou a uma sangrenta repressão.

Do ponto de vista prático, em 2019 foi Teerã quem aumentou a intensidade de atos contra interesses americanos, com a perspectiva real de uma nova insurgência xiita no Iraque. Foram trocas de ataques que levaram à morte de um mercenário americano.

A cena da embaixada em forma de fortaleza que Washington mantém na Zona Verde de Bagdá sitiada fez Trump lembrar o efeito da crise dos reféns da representação no Irã em 1979 sobre a carreira do então presidente Jimmy Carter: o fim dela.

Daí a matar o principal arquiteto militar do adversário, também é possível argumentar, há uma longa distância. Apesar da evidente afobação e da falta de aconselhamento a Trump no caso, contudo, não são poucos os argumentos coerentes nos EUA de que tal movimento teria de ocorrer em algum momento.

A evolução do poderio iraniano nos últimos anos foi concomitante ao respiro dado pelo acordo nuclear de 2015. Outros fatores alimentaram a preocupação em Washington, crescentemente desengajada da região mais explosiva do mundo.

O desfecho da guerra civil na Síria colocou ninguém menos do que Putin, esse sim um adversário potencialmente existencial de Washington, na posição de grande ator no Oriente Médio. Aliás, não foi casual a citação de Trump em seu discurso sobre ter algo que ainda não possui: mísseis hipersônicos, a arma da moda propagandeada pelo russo.

A a Turquia, mesmo sendo membro da aliança militar liderada pelos EUA, passou a agir por conta própria de forma agressiva, como suas ações em solo sírio e agora na Líbia demonstram.

Muitos analistas duvidavam da efetividade, no longo prazo, dos movimentos do Irã, dada a quantidade de contrariados no tabuleiro. Mas que o processo estava em curso, isso é incontestável e no mínimo ampliaria a capacidade do Estado persa de projetar-se assimetricamente —que manteria a capacidade de, eventualmente, fabricar a bomba.

Navegando por tudo isso está Israel, que os EUA têm historicamente como missão defender. Com o comprometimento cada vez mais dúbio de Washington na região, Tel Aviv alinhou-se ao eixo sunita composto por Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, que combate o centro da minoria xiita, o Irã.

Como se vê, é um caso de conflito multifatorial, que tem raízes na ruptura do Irã com o Ocidente que fomentava suas ditaduras, em 1979, mas não só. O que veio depois disso é criticável de lado a lado, mas a crise atual demonstrou que, com um pouco de agressividade e outro tanto de hipocrisia, é possível evitar momentaneamente o pior. 

Foto distribuída por agência estatal do Irã mostra suposto míssil usado em ataque contra os EUA
Foto distribuída por agência estatal do Irã mostra suposto míssil usado em ataque contra os EUA - Iran Press/AFP
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