Haiti ainda sente terremoto 10 anos depois

Tremor que arrasou país se refletiu em uma década de instabilidade e promessas não cumpridas de desenvolvimento

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São Paulo

As montanhas de pedras, os prédios inclinados como pequenas torres de Pisa e as praças tomadas por tendas improvisadas com lençóis há muito deixaram de fazer parte da paisagem de Porto Príncipe. 

Em compensação, o palácio presidencial ainda não reconstruído, os precários bairros surgidos para acolher desabrigados e a perene falta de serviços básicos são lembretes permanentes da maior tragédia já vivida por um país que as colecionou aos montes ao longo de sua história.

Neste domingo (12), o terremoto de magnitude 7 que arrasou o Haiti, deixando entre 100 mil e 200 mil mortos (a depender da fonte), completa dez anos.

Haitianos sobem em escombros de loja em rua do centro de Porto Príncipe para obter alimentos e produtos de valor - Caio Guatelli - 17.jan.10/Folhapress

A tragédia atingiu em cheio o Brasil, que comandava a força armada da ONU no país

Morreram 18 militares brasileiros, além da fundadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns, e do diplomata Luiz Carlos da Costa, que era o número 2 da missão civil das Nações Unidas.

A primeira reação da comunidade internacional foi inundar o país caribenho de socorristas, militares e promessas de dinheiro. 

Reconstruir o país do zero, transformando o desastre em uma oportunidade, tornou-se um slogan.

Uma década depois, no entanto, a promessa de um renascimento haitiano ficou no papel.

O país vive crônica instabilidade política, que não raro se traduz em manifestações violentas nas ruas.

O presidente Jovenel Moïse tem dificuldades em participar de eventos públicos, e há dúvidas se chegará ao fim de seu mandato, em 2022. 

Não é improvável que sua presença num ato marcado para este domingo em memória das vítimas do terremoto resulte em novas manifestações.

As razões para o descontentamento popular têm sobretudo fundo econômico. 

Após cair mais de 5% no ano do terremoto, a economia reagiu em meados da década, mas nunca engatou uma sequência de crescimento exuberante.

Nos últimos anos, a situação deteriorou-se. O PIB ficou estagnado no ano passado, segundo o FMI, e poderá até diminuir em 2020.

Também há acusações de desvio de recursos que deveriam ter sido usados para a reconstrução do Haiti, além de uma perene animosidade entre governo e oposição.

Na última quarta (8), o Conselho de Segurança da ONU aprovou resolução pedindo a formação de um governo de união nacional e alertando para as condições humanitárias em declínio no país. 

Em relatório divulgado na quinta (9), a ONG Médicos Sem Fronteiras diz que o sistema de saúde do país está à beira do colapso, em meio a uma crise política e econômica que se agrava.

Ex-representante da OEA (Organização dos Estados Americanos) no país, o brasileiro Ricardo Seitenfus diz que o terremoto teve um impacto que foi além da destruição de vidas e infraestrutura. 

“O terremoto, pela sua escala e o ineditismo da devastação, deixou a comunidade internacional desnorteada. A resposta dada foi a pior possível”, afirma.

O diagnóstico, segundo ele, foi equivocado. “Mandar militares e encarar a situação pelo viés da ameaça à segurança foi um erro. O Haiti precisava de apoio político e construção de instituições”, diz.

O Brasil foi um dos países que responderam ao chamado de mais tropas, criando um segundo batalhão militar em Porto Príncipe. Os EUA enviaram navios e ocuparam o porto da capital, o que gerou um mal-estar com os brasileiros.

Um segundo erro, diz Seitenfus, foi ter deixado o Estado haitiano à margem do processo de reconstrução, contribuindo para fragilizá-lo ainda mais.

Ele calcula que dos US$ 11 bilhões prometidos pela comunidade internacional, apenas US$ 4,5 bilhões tenham sido efetivamente doados. 

Desse montante, irrisórios 2,3% passaram por canais oficiais haitianos. O resto foi distribuído para ONGs, que chegaram a ser mais de 10 mil em determinado momento.

“O Haiti se tornou um terreno para experimentos humanitários, sem coordenação”, declarou. 

As tropas de paz da ONU, que haviam chegado ao Haiti em 2004 para conter a violência de gangues armadas, ficaram até 2017, sempre sob comando brasileiro. 

Diversos generais que lideraram o efetivo acabaram ocupando cargos de destaque no governo de Jair Bolsonaro.

Seitenfus reconhece que os militares tiveram papel estabilizador em alguns momentos, mas deixaram também um legado desastroso no Haiti.

Uma epidemia de cólera, provavelmente trazida por capacetes azuis do Nepal, matou ao menos 10 mil pessoas, afirma ele, que acaba de lançar o livro “A ONU e a Epidemia de Cólera no Haiti” (ed. Alameda).

Para o embaixador do Brasil no Haiti, Fernando de Mello Vidal, a participação brasileira no país continua sendo relevante, mesmo após a saída das tropas.

“Do ponto de vista político, a importância do Brasil não diminuiu”, afirma o embaixador.

O Brasil segue integrando um grupo de países que busca reforçar as instituições haitianas, do qual também participam EUA, Canadá e União Europeia.

Há dois projetos grandes de cooperação bilateral em curso, um na área de saúde, no valor de US$ 90 milhões, que prevê a construção de hospitais e um centro de vacinas, e outro na de formação profissional, de US$ 17 milhões.

Mas a principal ligação do país com o Brasil é a imigração de haitianos.

Por mês, são cerca de mil vistos concedidos pela embaixada brasileira, em geral de familiares que ficaram para trás na primeira leva dos que decidiram deixar o país por causa da devastação.

Apesar do cenário de instabilidade, houve alguns avanços inegáveis na última década. Um dos principais é na segurança pública. 

A Polícia Nacional Haitiana (PNH), historicamente tida como corrupta, despreparada e violenta, deu um salto de qualidade, embora ainda esteja distante de padrões de países desenvolvidos. 

“A polícia hoje é uma instituição mais respeitada, que aprendeu a usar métodos não-letais. Mas ainda há um problema sério de segurança urbana, não convém circular exibindo sinais de riqueza”, diz Vidal.

As gangues que aterrorizavam o país caribenho, e que foram um dos fatores apresentados como justificativa para a missão de paz da ONU, perderam muito de sua força.

Mas a insegurança, dez anos depois do terremoto, deslocou-se de bairros como Cité Soleil e Bel Air, antigos redutos das gangues, para o improviso da enorme favela de Canaan, que muitos já consideram a maior da América Latina.

O terreno inóspito, localizado a 20 km do centro de Porto Príncipe, simboliza as promessas não realizadas para a população haitiana.

Idealizado para ser um bairro planejado que desse moradia aos que perderam suas casas, o local rapidamente registrou uma explosão demográfica que o levou a ter 200 mil moradores. 

Sem condições ideais de saneamento e poucas perspectivas de conseguir trabalho, seus habitantes se encontram em situação não muito melhor da que viveram naquele dia trágico de uma década atrás.

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