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Na Argentina, movimento do lenço verde teve seu momento de glória

Com decisão sobre o aborto, feminismo foi revigorado, mas haverá efeito no restante da região?

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​Esteban Caballero

Cientista político, ex-diretor regional para a América Latina e o Caribe do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA)

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A aprovação da lei sobre a interrupção voluntária da gravidez na Argentina teve um efeito profundo sobre o movimento de mulheres e o feminismo latino-americano.

Após anos de mobilização pelo aborto livre, seguro e gratuito, o movimento do lenço verde teve seu momento de glória, enviando uma mensagem clara de "sim, pode ser feito" às mulheres além das fronteiras do país sul-americano.

Em manifestação em Buenos Aires favorável à legalização do aborto, centenas de pessoas exibem lenços verdes nas proximidades do Congresso argentino
Em manifestação em Buenos Aires favorável à legalização do aborto, centenas de pessoas exibem lenços verdes nas proximidades do Congresso argentino - Emiliano Lasalvia - 10.dez.2020/AFP

A pergunta que muitos estão fazendo é se essa injeção de otimismo terá algum efeito no desmantelamento das leis mais restritivas que existem na região.

Para responder a essa pergunta, vale a pena rever algumas das características do processo argentino, especialmente o aspecto político.

Se analisarmos a votação nas Câmaras do legislativo nacional, podemos perceber que a aprovação foi devida de forma importante aos votos da coalizão Frente de Todos da gestão no poder.

O governo de Alberto Fernández enviou o projeto de lei e o partido o apoiou. Cristina Fernandez, presidente do Senado e líder do peronismo, também colocou seu peso por trás da iniciativa, ao contrário dos anos anteriores, quando não se expressou a favor do aborto.

Dos 131 votos a favor da proposta na Câmara dos Deputados, 82 eram da Frente de Todos (63%), e no Senado, dos 38 votos a favor, 26 eram da Frente de Todos (68%).

O apoio político foi dado pelo poder de convocação e mobilização do movimento do lenço verde. O processo argentino vem se desenvolvendo há anos e sua influência vem crescendo a tal ponto que durante a campanha eleitoral Alberto Fernandez foi encorajado a prometer uma iniciativa legislativa que assumisse as demandas do movimento pelo aborto livre, legal e seguro.

O movimento também encontrou maneiras de colocar seus membros em posições-chave no governo e no Congresso. Essas vozes foram importantes na construção de maiorias.

Além da força do próprio movimento, ou talvez como consequência do mesmo, houve uma articulação do movimento do lenço verde com outros movimentos sociais e diversas manifestações cidadãs.

Foi um bom exemplo do que foi proposto pelo mesmo programa da Frente de Todos, que fala da "necessidade de recuperar a esperança e superar a crise econômica e social com base em um amplo acordo que inclua os diversos atores sociais de nossa sociedade e que permita um caminho sustentado para o desenvolvimento com equidade".

Poderíamos, portanto, descrevê-la como uma das propostas para uma nova hegemonia que inclui resolutamente o feminismo.

Outro aspecto importante foi a qualidade do projeto e a linha de argumentação.

O governo colocou grande ênfase no fato de que o aborto clandestino não é seguro e acarreta riscos em termos de mortalidade e morbidade maternas. Que, embora se queira que o aborto não aconteça, a realidade é que é um aspecto da saúde pública que merece ser regulamentado e não criminalizado.

Por outro lado, o projeto tem muito cuidado com o aspecto da equidade, assegurando que o direito chegue às mulheres pobres e não favoreça injustamente as clínicas privadas e as mulheres que podem pagar os preços de mercado.

A qualidade técnica do projeto também levou a importantes setores do corpo médico a apoiar o projeto, fortalecendo assim sua credibilidade.

De fato, são todos esses elementos que se somam e eclodem, causando a grande surpresa. Embora a lei argentina se some às regulamentações existentes em Cuba, Uruguai, Guiana e Cidade do México, e no Estado de Oaxaca no México, este é o primeiro país latino-americano com uma população de 45 milhões de habitantes a se abrir ao procedimento.

Voltando à nossa pergunta inicial, sobre a replicabilidade do caso argentino em outros países da região, pensamos que a resposta está implícita.

Na Argentina eles tinham uma boa proposta, apoiada por profissionais de saúde, mobilizados por um movimento social dinâmico, com o apoio do Executivo, do partido governante e com alianças sociais. Foi essa combinação que tornou possível a aprovação.

Embora se deseje pensar que essa decisão abre um processo regional de levantamento de restrições, a realidade certamente será diferente.

O impacto do processo na cultura regional, onde a influência das igrejas e do patriarcado tem colocado em questão tanto a noção de Estado secular quanto o respeito à autonomia das mulheres, tem sido muito importante. Mas a possibilidade de mudanças similares em outros países dependerá de muitas variáveis.

Sem dúvida, o movimento feminista foi revigorado, mas será o contexto nacional que determinará o máximo e o mínimo que esse movimento pode estabelecer. As feministas centro-americanas e paraguaias têm o panorama mais complicado.

A reação da ultradireita não demorou muito em vir, com Jair Bolsonaro criticando a medida e prometendo que nada semelhante acontecerá no Brasil enquanto ele estiver no poder.

Ofelia Fernandez, a legisladora de Buenos Aires, respondeu: "Muito boa opinião que ninguém lhe pediu, aproveito esta oportunidade para lhe recomendar que não relaxe, que a força feminista latino-americana no Brasil seja somada à fúria por Marielle [Franco]. Boa sorte, isso acaba de começar”.

Na realidade, isso começou há muito tempo, e o que as jovens argentinas têm feito é permitir um reposicionamento do movimento para alcançar diferentes avanços em diferentes contextos.

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Tradução de Maria Isabel Santos Lima

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