Descrição de chapéu The New York Times Venezuela

Após anos de crise, elite de Caracas vê sua vida melhorar com medidas de Maduro

Abertura a dólares e a importações melhorou condições para parte da população

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Anatoly Kurmanaev Isayen Herrera
Caracas | The New York Times

Dançando ao som da música de um DJ e tomando drinques no terraço aberto de um bar na encosta de uma montanha, alunos de um colégio particular de Caracas curtiam uma festa. As favelas da capital venezuelana se espalhavam pelo vale mais abaixo.

Os moradores da periferia pobre da capital continuam a enfrentar desnutrição e falta de água.

E na zona rural em volta, a Venezuela está caindo aos pedaços. A população convive com a falta dos serviços mais básicos, como eletricidade e polícia.

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Adolescentes tiram selfie durante aniversário em bar de Caracas - Adriana Loureiro Fernandez/The New York Times

Mas as áreas mais nobres que se espalham pela capital vêm desfrutando um boom econômico notável.

Shopping centers que seis meses atrás viviam vazios agora ficam lotados. Utilitários esportivos importados percorrem as ruas de Caracas.

A cada semana surgem novos bares e restaurantes nos bairros mais ricos da capital. Suas mesas vivem repletas de empresários estrangeiros, venezuelanos elegantes e figuras ligadas ao governo.

“As pessoas estão fartas de apenas sobreviver”, comentou Raul Anzola, gerente do 1956 Lounge and Bar, onde aconteceu a festa dos estudantes adolescentes. “Elas querem gastar. Querem viver.”

Praticamente da noite para o dia, o líder autoritário do país, Nicolás Maduro, tornou isso possível –para alguns venezuelanos.

Com a economia nacional fora dos eixos após anos de corrupção e má administração e depois empurrada para o quase colapso pelas sanções americanas, Maduro se viu forçado a afrouxar as restrições econômicas que no passado definiam seu governo socialista e formavam a base de sua legitimidade política.

As mudanças subsequentes ajudaram a transformar o país de maneiras que poucos em Washington ou Caracas devem ter previsto, mas que lembram o modo como suas aliadas Cuba e Nicarágua, quando confrontadas com a perspectiva de colapso econômico em décadas anteriores, liberalizaram suas políticas comunistas e passaram a permitir alguns investimentos privados.

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Shopping lotado durante a Black Friday, em Caracas - Adriana Loureiro Fernandez/The New York Times

Depois de passar anos nacionalizando empresas, ditando a taxa de câmbio e tabelando os preços dos produtos de primeira necessidade —medidas que contribuíram para a escassez crônica desses produtos—, Maduro agora parece ter feito as pazes com o setor privado e afrouxado as rédeas.

E, enquanto a economia venezuelana como um todo continua a encolher, a redução dos regulamentos está incentivando firmas que atendem à elite ou ao mercado de exportação a voltar a investir.

Hoje os dólares são aceitos em toda parte, não obstante Maduro frequentemente denunciar os Estados Unidos como a raiz de todos os problemas de seu país.

É difícil encontrar bolívares, que perderam quase todo seu valor devido à hiperinflação.

“Não encaro como negativo esse processo que chamam de dolarização”, disse Maduro em entrevista dada à televisão em dezembro. “Graças a Deus isso existe.”

A volta de mercadorias às prateleiras das lojas também ajudou a acalmar as tensões em Caracas, onde a revolta provocada pela falta de produtos de primeira necessidade ajudou a alimentar protestos em massa ao longo dos anos.

Sob a nova economia, os partidários de Maduro entre a elite venezuelana vivem muito bem graças a negócios comerciais e a seus estoques de divisas, que não podem gastar no exterior devido às sanções dos EUA.

No 1956 Lounge, adolescentes e seus pais tomavam champanhe e falavam de passeios de iate que pretendiam fazer.

A transformação também trouxe algum alívio aos milhões de venezuelanos que têm familiares no exterior e hoje podem receber dólares deles e gastá-los com alimentos importados. Mas o boom também tem um custo.

A nova economia de livre mercado exclui completamente a metade da população venezuelana que não tem acesso a dólares.

Esse fato exacerbou a desigualdade, esse mal tão capitalista, e enfraquece a alegação de Maduro de estar preservando o legado de igualdade social deixada por seu predecessor, Hugo Chávez, e sua chamada revolução bolivariana.

Em seus discursos, Maduro continua a promover uma visão da Venezuela como um país cujos recursos são compartilhados por todos, mas a distância entre o discurso e a realidade está maior que nunca, segundo o economista Ramiro Molino, da Universidade Católica Andrés Bello, de Caracas.

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Festa em iate em Tucacas, na Venezuela - Adriana Loureiro Fernandez/The New York Times

“A luta pela sobrevivência obrigou o governo a ser pragmático”, disse Molino. “Apenas a narrativa continua sendo socialista.”

Até mesmo alguns membros do partido governista descreveram as mudanças adotada por Maduro como uma traição ao movimento chavista de inspiração socialista e sua missão declarada de ajudar os pobres.

“Isto daqui é um capitalismo selvagem que vem apagar anos de luta”, comentou Elias Jaua, o ex-vice-presidente de Chávez e ainda membro da direção do Partido Socialista de Maduro.

A produção petrolífera, maior fonte de recursos do país, está se estabilizando, depois de ter caído para o nível mais baixo desde a década de 1940 após Maduro afrouxar o controle do Estado sobre o setor e abraçar investimentos privados.

Mas, em lugar de levar adiante os gastos públicos generosos que marcaram a era de Chávez, o que se viu foram cortes profundos nos programas sociais. Segundo a consultoria Ecoanalítica, de Caracas, os gastos do governo venezuelano encolheram 25% no ano passado.

A liberalização econômica drástica vem sendo acompanhada por uma repressão política cujo objetivo é sufocar os últimos resquícios de oposição organizada ao governo de Maduro. Esse novo modelo leva alguns venezuelanos a descrever seu país como uma “China tropical”.

Em um sinal da nova confiança do mercado, em 2019 cerca de cem empresas venezuelanas solicitaram a emissão de novos títulos –o número mais alto em dez anos.

Na semana passada, a maior empresa de rum do país, Ron Santa Teresa, completou sua primeira emissão nova de ações na Bolsa local em 11 anos.

O governo vem eliminando entraves burocráticos e fazendo vista grossa para a cobrança de impostos, alimentando um boom nas exportações privadas de produtos que vão do petróleo ao chocolate, enriquecendo elites empresariais tradicionais e com bons contatos políticos.

Segundo Molino, o economista, no ano passado as importações feitas por empresas privadas superaram as realizadas pelo Estado, pela primeira vez na história moderna do país.

“Há muito dinheiro circulando no momento –basta saber como encontrar”, comentou recentemente o contador Zairet López, falando num festival de música em Caracas onde o ingresso custara US$ 70, o equivalente a 14 salários mínimos mensais.

Com a presença das maiores bandas venezuelanas radicadas no exterior, sem falar em hambúrgueres por US$ 12 e cervejas artesanais, o festival foi um dos inúmeros eventos de entretenimento que vêm pipocando nos últimos meses na capital antes sombria.

A abertura econômica vem tendo efeito nitidamente desigual sobre os venezuelanos.

Oficiais militares e funcionários governamentais com bons contatos vêm se beneficiando de uma multidão de novas oportunidades de negócios e concessões do governo em áreas que abrangem desde a extração de ouro até hotéis litorâneos.

Por terem reduzido o acesso ao turismo e a transações bancárias no exterior, as sanções estão obrigando essas elites a gastar dentro do próprio país, fato que alimenta o consumo interno de luxo.

Cansadas de esperar por mudanças políticas, as classes média e alta que fazem oposição a Maduro estão usando suas economias em divisas acumuladas durante o período da prosperidade petrolífera dos anos 2000, quando o governo deu bilhões de dólares aos cidadãos a taxas de câmbio altamente subsidiadas.

De acordo com o banco central, em 2018 cidadãos venezuelanos mantinham fundos no exterior totalizando US$ 136 bilhões.

Se esse valor fosse dividido igualmente entre todos os venezuelanos, chegaria a US$ 4.500 por pessoa. Mas alguns poucos venezuelanos tinham muito mais que isso.

No caso das pessoas em posição inferior na escala social, sua sobrevivência depende cada vez mais do dinheiro enviado pelos milhões de venezuelanos que emigraram nos últimos anos.

Cerca de 40% das famílias do país recebem remessas do exterior, em um total de US$ 3,5 bilhões por ano. Segundo Molina, essas remessas hoje exercem papel crucial na manutenção da economia do país.

“O governo vem conseguindo criar um efeito de fartura, e isso é algo que tem muito poder”, disse Félix Seijas, diretor do instituto de pesquisas Delphos, de Caracas. “Garante um certo alívio que ajuda a suavizar a tensão social.”

Mas metade dos venezuelanos não tem acesso a dólares. A maioria vive nas províncias e sobrevive a duras penas de alimentos subsidiados e assistência do governo, dada na moeda local desvalorizada.

Muitos desses alimentos são importados ou embalados por empresas privadas antes rejeitadas por Maduro como sendo parasitas e golpistas.

E, enquanto as lojas abastecidas e os restaurantes cheios melhoraram o estado de ânimo de alguns moradores da capital, após anos de declínio econômico constante esses fenômenos ainda não modificaram as perspectivas econômicas gerais do país.

O PIB venezuelano está previsto para cair mais 10% neste ano, depois de já ter encolhido em mais de dois terços desde 2013. É a maior queda vista na história moderna fora de uma zona de guerra, segundo o FMI.

Cerca de 80% dos venezuelanos consideram estar em situação igual ou pior do que estavam um ano atrás, segundo a Delphos.

E, enquanto as mudanças econômicas promovidas pelo governo reduziram o incentivo às manifestações públicas, quase dois em cada três venezuelanos diz que protestaria se as condições fossem propícias.

“A insatisfação ficou latente, mas não foi embora”, comentou Seijas.

Para a maioria dos venezuelanos, as reformas de Maduro proporcionaram alívio apenas marginal da devastação econômica dos últimos anos.

Mariely Marin, 30, vende algodão-doce numa praça no centro de Caracas. Ela ganha US$ 2 por dia, o que mal chega para comprar comida e não é o suficiente para tratar uma doença respiratória que recentemente lhe custou um dos pulmões.

“É um jeito de esconder a realidade”, disse ela, falando das multidões de pessoas tirando selfies na praça iluminada, em meio a ambulantes vendendo pipoca e doces.

“Quem já conheceu uma outra Venezuela entende que as coisas não vão bem. É óbvio que a crise continua.”

Tradução de Clara Allain 

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