Descrição de chapéu The New York Times

Como a China monitorou detentos muçulmanos uigures e suas famílias

Documento traz visão detalhada da vigilância de detentos em campos de doutrinação e de seus familiares

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Austin Ramzy
The New York Times

A última vez que Rozinisa Memettohti teve notícias de sua família foi mais de três anos atrás, antes de a China ter começado a arrebanhar muçulmanos no extremo oeste do país.

Ela vivia no exterior e não sabia nada sobre o que fora feito de seus familiares —até que veio à tona um documento governamental vazado que descrevia a vida deles com detalhes assustadores.

De etnia uigur e vivendo na Turquia desde 2003, Memettohti ficou sabendo pelo documento que duas de suas irmãs foram enviadas a campos de doutrinamento, por terem tido mais filhos que o permitido na região. Uma delas também foi visada porque tinha conseguido um passaporte.

Chamada para orações muçulmanas na cidade de Kashgar, em Xinjiang, em 2015 - Adam Dean/The New York Times

“A realidade é muito pior do que o que eu temia”, disse Memttohti em entrevista por telefone neste mês. “Meu pai, meus irmãos e minhas irmãs estão correndo perigo.”

Nos últimos anos, as autoridades da região de Xinjiang internaram centenas de milhares de uigures, cazaques e membros de outros grupos minoritários muçulmanos em campos de doutrinamento. São as maiores detenções em massa desde a era de Mao. 

O documento vazado oferece uma visão rara e detalhada de como o Partido Comunista vem colocando em prática um sistema de detenções que está destruindo a tessitura da sociedade em Xinjiang.

Uma planilha de 137 páginas apresenta um esboço de informações que as autoridades do condado de Karakax, no sudoeste de Xinjiang, colheram sobre seus habitantes.

Ela inclui os nomes e números identificadores governamentais de mais de 300 pessoas mantidas em campos de doutrinamento, além de informações sobre centenas de seus familiares e vizinhos.

Mesmo adolescentes de 16 anos foram monitorados estreitamente para verificar sinais do que Pequim vê como desvios de pensamento.

O documento é um de vários arquivos compilados sobre mais de 1 milhão de pessoas que já passaram pelos campos e mostra a gama de comportamentos que as autoridades veem como problemáticos, como desistir de beber álcool, querer partir numa peregrinação religiosa ou ir a um funeral.

No caso de Memmettohti, suas irmãs foram identificadas como suspeitas por orarem regularmente.

A planilha vem somar-se a um conjunto crescente de evidências sobre essas detenções. Reportagens do ano passado sobre outros documentos governamentais vazados, publicadas pelo New York Times e um conjunto de veículos liderado pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, mostraram a natureza coerciva da repressão e os controles rígidos impostos aos detentos nos campos.

O documento mais recente foi vazado no ano passado, e ativistas uigures no exterior o compartilharam com várias organizações de imprensa, incluindo o New York Times.

Rozinisa Memettohti, que vive na Turquia e soube da detenção de suas irmãs pelo documento vazado - Furkan Temir/The New York Times

Ele mostra como a China vem procurando dominar os uigures e outros grupos minoritários em nome da segurança, disse Adrian Zenz, pesquisador que analisou a planilha.

“Este documento é de longe o mais detalhado que temos”, comentou Zenz, membro sênior da Fundação Memorial das Vítimas do Comunismo, em Washington.

“Ele nos permite dissecar a anatomia da campanha de detenções e o que o governo” está fazendo agora com essas pessoas.

Zenz afirma acreditar na legitimidade do documento por várias razões. Ele disse que confirmou as identidades de 337 detentos citados, de seus parentes e vizinhos, checando-os contra dados contidos em outros documentos governamentais, planilhas e um banco de dados vazado da empresa chinesa de vigilância SenseNets. 

Além de nomes, números de identidade, endereços e fotos, as planilhas incluem coordenadas de GPS.

Ele disse também que localizou três campos de internação citados no documento, com base em outros previamente identificados, e que a linguagem empregada nas planilhas espelha a de outros documentos oficiais de Xinjiang.

O governo chinês diz que sua política para a região tem por objetivo combater o terrorismo e o separatismo e que os campos oferecem instrução em língua chinesa e outras habilidades a pessoas suscetíveis a ideias extremistas.

Mas a planilha de Karakax mostra como as autoridades vêm espionando detalhes mínimos do cotidiano para identificar alvos a serem detidos.

As autoridades examinaram três gerações da família de cada detento, além de seus vizinhos e amigos. Os encarregados de monitorar mesquitas informaram a assiduidade com que os moradores participam de cerimônias religiosas, incluindo casamentos e funerais.

A lista especificou se os detentos aprenderam sobre religião com seus pais e avós ou em outro lugar.

Dezenas de detentos foram citados como tendo um “ambiente religioso pesado” em casa. Essa designação frequentemente era seguida por uma recomendação de que não fossem soltos.

As autoridades também estudavam quantas vezes por dia os detentos oravam e se eles demonstravam interesse por peregrinações religiosas.

Sinais externos de observância religiosa também foram anotados. “Ficou barbado de março de 2011 a julho de 2014”, diz a descrição de um detento aparentado com várias pessoas que foram enviadas aos campos.

As autoridades classificaram como “digno de confiança” outro homem, pai de dois detentos, que raspou a barba e voltou a beber um ano após ter parado.

Zenz, que estudou a planilha, calculou que três quartos dos detentos citados lá já foram libertados. A estimativa coincide com declarações de autoridades em Xinjiang em 2019 dizendo que começavam a encerrar o programa.

Mas o documento mostra que muitas das pessoas libertadas mais tarde foram enviadas para trabalhar em parques industriais fortemente controlados e que pelo menos uma fez esse tipo de trabalho quando ainda estava detida.

Alguns ex-detentos descreveram um sistema de trabalhos forçados em que recebiam pouca ou nenhuma remuneração depois de libertados.

Tradução de Clara Allain

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