Mulheres ganham protagonismo inédito no Vaticano, mas estrutura servil segue intacta

Papa Francisco colocou nos últimos meses italiana e brasileira em postos importantes da Igreja Católica

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Lucas Ferraz
Roma

Os números e os mais recentes atos do papa Francisco mostram um novo cenário: nunca antes as mulheres tiveram tanto protagonismo no Vaticano.

Mas um arcaísmo persiste intacto no catolicismo, seja na cúpula da igreja em Roma, seja nas paróquias espalhadas pelo mundo: muitas são as mulheres, geralmente irmãs consagradas, que servem padres, bispos e cardeais como empregadas domésticas, quase sempre sem nenhum direito reconhecido.

A discussão sobre a igualdade de gêneros ganhou impulso no pontificado do argentino Jorge Mario Bergoglio, mas, como reconhecem as mulheres, muito ainda precisa ser reformado num ambiente comparável a uma monarquia absolutista cujo poder predominante é masculino e clerical.

A advogada italiana Francesca Di Giovanni, escolhida pelo papa Francisco para a Secretaria de Estado do Vaticano
A advogada italiana Francesca Di Giovanni, escolhida pelo papa Francisco para a Secretaria de Estado do Vaticano - Vaticano - 23.dez.13/Reuters

Atualmente as mulheres correspondem a 21% dos empregados da Cidade do Vaticano. São mais de 950, entre religiosas e laicas. 

O primeiro contrato de trabalho de uma mulher na Santa Sé data de 1915 —de uma costureira que atuava no mobiliário do papa Bento 15. Hoje muitas são as mulheres em cargos de direção em diferentes áreas, com predominância nos setores de comunicação, saúde e do patrimônio artístico.

O museu do Vaticano, que tem uma das coleções de arte mais valiosas do mundo e é um dos mais visitados da Europa, é dirigido desde 2017 pela italiana Barbara Jatta, que comentou, quando anunciada, que esperava ter sido escolhida “não por ser mulher, mas por suas qualidades”.

A última nomeação feminina, anunciada em meados de janeiro, foi da advogada italiana Francesca Di Giovanni, que cuidará das relações multilaterais da Secretaria de Estado da Santa Sé.

É a primeira vez que uma mulher tem um cargo de direção no órgão que cuida da diplomacia vaticana.

A brasileira Cristiane Murray é outra recém-promovida no pontificado de Francisco. Desde julho, a jornalista é vice-diretora da Sala de Imprensa da Santa Sé, o que significa também ser vice-porta-voz do Santo Padre.

“Somos ainda poucas mulheres a desfrutar de maior proximidade ao papa. Não vejo entraves e me sinto encorajada por ele a me sentir à vontade, a desempenhar meu trabalho com seriedade e a não renunciar às especificidades de ser mulher”, comentou.

O papa Francisco e a jornalista brasileira Cristiane Murray, no Vaticano
O papa Francisco e a jornalista brasileira Cristiane Murray, no Vaticano - Vaticano - 11.dez.18/AFP

Carioca e formada em administração de empresas, Murray trabalha na instituição desde 1995, atuando antes no serviço brasileiro da Rádio Vaticano.

Apesar dos destaques recentes, há também críticas de dentro da própria igreja. No final de dezembro, o jornal L’Osservatore Romano, veículo oficial da igreja, publicou um artigo assinado por três sócias do grupo Mulheres no Vaticano, formado por funcionárias que trabalham na Cidade do Vaticano.

No texto, intitulado “Romper o muro da desigualdade”, as autoras discorrem sobre o “deságio profissional” feminino: “Como em tantas sociedades, também no Vaticano as mulheres são às vezes vistas —por homens, mas também por outras mulheres— como pessoas de menor valor intelectual e profissional, sempre disponíveis ao serviço, sempre dóceis aos comandos superiores”.

Em termos de direitos trabalhistas, no entanto, de acordo com a organização, o Vaticano seria o único Estado do mundo onde há equiparação salarial de gênero, além de estabelecer para ambos os sexos (no caso dos laicos) a mesma idade mínima para se aposentar (65 anos).

Ainda que reconheçam os avanços, grupos católicos feministas que atuam fora da igreja são críticos quanto ao estado geral das coisas.

“O ponto não é ter paridade salarial, o que é importante. Mas seria diferente dar mais responsabilidades e reconhecer que falta a governança delas”, afirma Paola Lazzarini, presidente da associação Mulheres para a Igreja.

Nos sínodos realizados pela Igreja Católica, por exemplo, as mulheres participam, mas não têm direito a voto. O papa Francisco criou anos atrás uma comissão para estudar a possibilidade do diaconato feminino, mas o assunto —até agora sem consenso— não avançou.

O jornal L’Osservatore Romano foi palco de um recente embate que expôs a enorme fissura existente na estrutura da igreja em relação às mulheres.

Em 2012, ainda durante o pontificado de Bento 16, foi criado no periódico o suplemento feminino mensal “Donne Chiesa Mondo” (mulheres igreja mundo).

Lucetta Scaraffia, ex-editora do suplemento feminino mensal “Donne Chiesa Mondo”, do jornal L’Osservatore Romano
Lucetta Scaraffia, ex-editora do suplemento feminino mensal “Donne Chiesa Mondo”, do jornal L’Osservatore Romano - Reprodução/Instagram

O próprio papa alemão autorizou a novidade e designou como responsável a jornalista e professora italiana Lucetta Scaraffia, que já colaborava com o veículo.

Seu trabalho e posições inovadoras chamaram a atenção a ponto de a revista americana New Yorker fazer um perfil de Scaraffia, afirmando que ela “estava lutando contra o patriarcado católico por dentro”.

À época, ela afirmava acreditar que o catolicismo caminhava para mudanças irreversíveis.

Em março do ano passado, contudo, após troca de comando no dicastério (similar a ministério) que cuida da comunicação do Vaticano, ela e sua equipe (outras oito mulheres) se demitiram do cargo.

Segundo elas, a saída foi forçada por pressão dos superiores, que estavam descontentes com a linha editorial do suplemento —o Vaticano nega.

Scaraffia conta que o clima pesou após duas reportagens que tiveram grande repercussão: uma sobre as freiras que servem os sacerdotes como domésticas, e outra sobre as freiras vítimas de abuso sexual por parte de superiores.

As reportagens foram concebidas após o papa Francisco agradecer o trabalho da imprensa por revelar
casos de violência sexual cometidos por religiosos. “Pensamos que poderíamos fazer o mesmo, mas não era verdade”, comentou.

Aos 72 anos e há quase um ano fora do suplemento, Scaraffia afirma que a discussão feminina no Vaticano encontra-se atualmente bloqueada.

Ela tem críticas ao protagonismo recente dado às mulheres por considerar que as nomeações se baseiam em um “critério de obediência”.

Entre as disparidades, ela cita a falta de participação das mulheres em cargos de administração (“por que uma mulher não pode se tornar cardeal e escolher o papa?”, pergunta) e o tempo de estudo permitido às freiras, muito menor se comparado ao dos homens.

“O Vaticano é cheio de servas, isso é muito grave. Elas não têm contrato de trabalho, férias, aposentadoria, nada. Há uma total falta de respeito em relação à vocação feminina, que em muitos casos chega à violência sexual", afirma.

"A coisa mais terrível é que dizem para elas que a missão espiritual é limpar casa, passar pano, fazer serviço de empregada doméstica. Elas não são sequer colocadas na mesa com os padres."

Sua função à frente do suplemento feminino a aproximou de Bento 16 e de Francisco —ela tinha o número de celular do argentino, mas depois de sua demissão nunca mais se falaram.

Os dois, ressalta, têm visões diferentes sobre o tema: “Ratzinger era professor, estava habituado a ter colegas mulheres e respeita totalmente o trabalho intelectual delas. Bergoglio não é intelectual, é político, e politicamente ele entendeu que deveria fazer algo. Ele é menos interessado no pensamento delas e faz o mínimo porque sabe que mexer na estrutura significa se indispor com todos, inclusive os progressistas”.

Lazzarini, da associação Mulheres para a Igreja, afirma que tem aumentado o número de fiéis que deixam a igreja frustradas por causa do imobilismo sobre a questão.

Para ela, o tema causará impacto na instituição como um todo, já que geralmente são as mulheres que transmitem a fé dentro das famílias.

“Essa coisa de estar sempre pedindo por mudanças cansa, parece mendicância. Se a situação não mudar, haverá um êxodo em massa”.

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