Descrição de chapéu The New York Times

No Iraque, arte floresce em meio aos protestos contra o governo

Artistas mostram apoio aos manifestantes em grafites, pinturas e músicas

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The New York Times

Magro, tremendo de leve nos jeans que já estavam curtos demais para ele, Abdullah estava parado num estacionamento inacabado, fascinado por um mural cujo significado estava ansioso por explicar para uma visitante.

“Veja, o homem do meio está implorando às forças de segurança: ‘Não atirem em nós, não temos nada, nada’.” Repetindo a última palavra para dar ênfase maior, Abdullah examinou atentamente a imagem em preto e branco pintada sobre o muro.

Desenhado em carvão, em estilo realista socialista, o mural de mais de quatro metros de comprimento mostrava um grupo de homens caminhando para frente, carregando nos braços seus companheiros caídos. Os homens eram trabalhadores arquetípicos, com roupas toscas e rostos tensos.

Artista pinta mural na rua Sadoun, em Bagdá
Artista pinta mural na rua Sadoun, em Bagdá - Ivor Prickett/The New York Times

Abdullah, 18 –que pediu para que seu sobrenome não fosse usado, temendo represálias por seu envolvimento com protestos contra o governo—, trabalhou de faxineiro em um hospital, mas hoje atua como guia extra-oficial a uma das galerias de arte mais improváveis que se poderia imaginar: uma estrutura inacabada de 15 andares à margem do rio Tigre, conhecida localmente como o "Prédio do Restaurante Turco".

O lugar é o reduto autodeclarado de iraquianos que se opõem à liderança nacional atual.

Coberto por todos os lados com faixas de mensagens ao governo, às forças de segurança e ao mundo, o prédio lembra uma embarcação a vela prestes a zarpar, com os slogans escritos sobre panos brancos que esvoaçam ao vento.

Os primeiros cinco andares viraram um entre a meia dúzia de espaços artísticos importantes que nasceram em Bagdá em torno dos protestos, com pintores —com ou sem formação artística formal— convertendo paredes, vãos de escadas e espaços externos em uma tela comum enorme.

De onde veio toda essa arte? Como se explica que uma cidade onde a beleza e a cor foram em grande medida reprimidas durante décadas pela pobreza, sem falar na opressão ou indiferença de governos sucessivos, tenha de repente ganhado vida tão intensa?

“Sabe de uma coisa, temos muitas reflexões e pensamentos sobre o Iraque, mas ninguém do governo jamais nos perguntou o que eram”, comentou o professor de arte Riad Rahim, 45.

O centro criativo de Bagdá é a praça Tahrir. Pinturas cobrem as paredes das passagens subterrâneas que correm sob a praça, o espaço verde atrás dela e as ruas que levam a ela.

As pinturas, esculturas, fotografias e pequenos santuários erguidos para homenagear manifestantes mortos constituem arte política de um tipo raramente visto no Iraque, país onde se cria arte há pelo menos 10 mil anos.

É como se uma sociedade inteira estivesse despertando para o som de sua própria voz e para as dimensões, formas e influência de sua força criativa.

“No começo isto daqui era uma insurreição, mas agora virou uma revolução”, comentou o iraquiano radicado na Alemanha Bassim al Shadhir, que vai e vem entre os dois países e já participou dos protestos.

“Tem arte, tem teatro, tem gente dando palestras e distribuindo livros de graça.”

Artista abstrato formado em biologia, Shadhir pintou sua contribuição própria num muro na rua Sadoun, uma das maiores avenidas da cidade.

Ela mostra um homem baleado pelas forças de segurança. O sangue jorra de seu coração e forma uma lagoa imensa, grande demais para ser oculta ou lavada pelo militar mascarado posicionado atrás dele.

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Murais na rua Sadoun, em Bagdá - Ivor Prickett/The New York Times

Os temas e estilos artísticos expostos mostram que uma geração jovem de iraquianos foi influenciada pela internet, descobrindo na rede imagens que significam algo para ela e desenhando-as com toques próprios do Iraque.

Rosie, the Riveter (Rosie, a Rebitadeira), tem uma bandeira iraquiana pintada na bochecha. “Noite Estrelada”, de Vincent van Gogh, traz o prédio do Restaurante Turco no lugar de um cipreste.

Algumas das pinturas trazem personagens de quadrinhos, mas envoltos na bandeira iraquiana, o uniforme dos manifestantes.

Há ecos da pop art dos anos 1960 numa pintura do edifício do Restaurante Turco com um tuk-tuk vermelho saindo pelo telhado, voando.

O tuk-tuk é o mascote dos manifestantes –um veículo de três rodas, movido a diesel, que não requer carteira de habilitação para ser conduzido e se converteu na ambulância extraoficial da linha de frente, levando manifestantes feridos às tendas onde eles podem receber primeiros socorros.

Mais de 500 manifestantes já foram mortos, e milhares, feridos.

Árvores são outro tema comum. Em pontos diferentes do Restaurante Turco, pintores diversos criaram imagens de folhas caídas.

“Esta árvore é o Iraque, e vou escrever sobre cada folha o nome de uma das pessoas martirizadas pelas forças de segurança”, disse Diana al-Qaisi, 32, que se formou em engenharia de sistemas de informação, mas hoje trabalha com relações públicas.

“Suas folhas estão caindo porque é outono, e aqueles que querem matar a árvore estão tentando matar a revolução”, disse ela.

“Mesmo que tentem, algumas folhas vão continuar agarradas à árvore, esperando o momento de nascer.”

O país assiste a um florescimento expressivo que não se limita às artes visuais.

Mais de 12 canções já foram compostas para os protestos e circulam nas redes sociais. Grandes nomes das artes iraquianas –atores, atrizes, músicos, pintores e escultores— se uniram para gravar uma homenagem aos manifestantes mortos.

Recentemente, Rahim, o professor de arte, estava trabalhando com um amigo, Hussein Shenshul, 41, gerente de uma loja de roupas, sobre um projeto escultural conceitual e de baixo custo.

Eles estavam esculpindo maquetes arqueologicamente precisas de seis célebres sítios iraquianos, três deles da antiguidade e três modernos.

Eles haviam terminado três das esculturas –o minarete de Al Hadba, em Mossul, destruído na luta contra o Estado Islâmico, o zigurate de Samarra e o edifício do Restaurante Turco. Agora trabalhavam sobre uma maquete do Portão de Ishtar, da antiguidade babilônica.

Suas ferramentas eram espuma, palitos de dentes, estiletes e tinta em spray para colorir o segundo plano, além de pincéis para a caligrafia.

“Queremos exprimir o que significa a civilização iraquiana”, disse Rahim. “Queremos transmitir ao mundo a mensagem de que esta é nossa cultura, somos um povo educado, somos pintores, poetas, músicos e escultores –é isso o que significa ser iraquiano. Todo o mundo pensa que o Iraque não tem nada a não ser guerra e conflitos.”

Tradução de Clara Allain

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