Ofensiva final de Assad sobre rebeldes e turcos gera desastre humanitário na Síria

Ataques a Idlib, bastião desses combatentes, leva a êxodo de 800 mil, afirma a ONU

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São Paulo

A fase decisiva da guerra civil síria, disputada na província de Idlib, está provocando um dos maiores desastres humanitários desde o começo do conflito, em 2011.

A Organização das Nações Unidas estimou nesta quinta (13) que 800 mil pessoas fugiram dos combates entre forças do governo sírio apoiadas pela Rússia e rebeldes aliados à Turquia no último bastião que se opõe à ditadura de Bashar al-Assad no país.

Já o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, principal ONG de monitoramento de abusos na região, coloca o deslocamento interno de moradores na casa dos 980 mil —a maioria composta por mulheres e crianças.

Os embates começaram em dezembro, mas ganharam proporções mais dramáticas nas duas últimas semanas, quando o conflito civil se tornou uma disputa direta entre dois Estados, Turquia e Síria, com uma arriscada participação do Kremlin.

​Idlib tem cerca de 3 milhões de habitantes. Cerca de 400 mil pessoas já haviam deixado a área em dezembro e janeiro rumo ao norte, junto à fronteira turca, mas o número vem crescendo exponencialmente.

Segundo o Observatório, só de terça (11) a quinta foram 100 mil deslocados.

Não há estrutura suficiente, de acordo com a ONU, para abrigar todas as famílias, e muitas estão dormindo ao relento. O que leva a outro aspecto cruel: o inverno ora em vigor é rígido, com temperaturas em torno de zero à noite, neve e chuva. Em Azaz, um campo de deslocados foi montado às pressas com tendas feitas com rejeitos e lixo.

O coordenador-adjunto da ONU na Síria, Mark Cutts, disse a agências de notícias que este é provavelmente o maior deslocamento interno da guerra —o país tinha aproximadamente 23 milhões de habitantes antes do conflito.

Até aqui, havia 6,2 milhões dessas pessoas, além de 6,2 milhões de refugiados na região. A maioria, 3,3 milhões, está em campos montados no sul da Turquia.

Os turcos dizem querer estabelecer uma região na Síria que possa receber de volta essas pessoas, o que parece inviável com o avanço da retomada de controle do país pelo regime de Assad.

Os deslocados fogem daquilo que pode ser a batalha final da guerra civil, que destroçou a economia do país árabe e matou entre 380 mil e 560 mil pessoas, dependendo da fonte da estimativa.

Pior: poderão ser vítimas desta nova etapa do conflito, que opõe Damasco a Ancara.

Desde dezembro, forças de Assad promovem uma campanha para reconquistar Idlib. Estão sendo bem-sucedidas, e na quarta (12) retomaram a vital rodovia M5, que liga norte e sul do país, após anos sob controle de rebeldes.

A ação ocorre com apoio da Força Aérea da Rússia, instalada numa base do país desde 2015, na intervenção do presidente Vladimir Putin que salvou o governo de seu aliado Assad —em solo, os combates são reforçados por Irã e pelo grupo xiita libanês Hizbullah.

O problema é que Idlib é considerada uma zona de “de escalada militar”, segundo acordo entre turcos e russos em 2018. No fim do ano passado, contudo, a Turquia invadiu o norte da Síria quando os americanos anunciaram que deixariam a região.

O objetivo do presidente Recep Tayyip Erdogan era o de isolar os curdos da região daqueles que moram na Turquia, que lutam uma disputa separatista violenta há décadas. Em um acordo com Putin, foi criado um bolsão em 160 km, mas os turcos também entraram em Idlib.

Lá, apoiam grupos rebeldes como a Frente Nusra, uma aliada jihadista da rede terrorista Al Qaeda, que é proscrita na Rússia. O conflito de interesses ficou claro e a guerra ameaça colocar Moscou e Ancara, que é membro da Otan (aliança militar do Ocidente), em confronto.

O avanço sírio levou a combates com forças turcas, que mataram até aqui 14 soldados de Erdogan. Houve retaliação com ataques aéreos, deixando centenas de mortos, e o presidente turco escalou a presença na região com mais mil militares e equipamento pesado nesta semana.

O país tem 12 postos de observação na área, 4 deles em regiões que a Síria retomou.

Erdogan chegou ao paroxismo na quarta, quando acusou a Rússia de atacar alvos civis.

A relação entre os países é pendular, mas estava próxima devido ao afastamento entre Ancara e Washington.

Erdogan não perdoa Donald Trump por não extraditar o clérigo muçulmano Fethullah Gülen, quem acusa de armar um golpe de Estado contra si em 2016 —o líder turco até comprou sistemas de armas russos, sendo retaliado pelo americano.

Mas a retórica do turco encontrou um limite. Nesta quinta (13), o Kremlin classificou de inaceitáveis as acusações de Erdogan, com quem Putin havia conversado pessoalmente na véspera.

Ato contínuo, o ministro da Defesa da Turquia, Hulusi Akar, baixou o tom e disse que a presença militar de seu país só visa manter um cessar-fogo combinado com Moscou e que “a força será usada contra quem violar a trégua, incluindo radicais” —ou seja, seus aliados árabes rebeldes.

A extensão do recuo turco ainda precisa ser provada. Na semana passada, Erdogan havia sugerido que poderia até bombardear a capital síria, Damasco, caso suas forças fossem alvo de mais ataques.

Assim, causou apreensão na noite de quinta um relato da TV estatal síria de que as defesas aéreas de Damasco haviam abatido mísseis disparados em sua direção.

Eles eram, contudo, oriundos de seu inimigo a oeste, Israel, que vem atacando sistematicamente alvos do Irã e do Hizbullah no país árabe.

A Síria ainda está tecnicamente em guerra com Israel, e tanto Teerã quanto a milícia xiita são seus inimigos declarados. Assim, Tel Aviv busca evitar o estabelecimento de novas frentes potenciais perto de suas fronteiras.

Ao mesmo tempo, o Estado judeu tem um acordo para evitar escaramuças com forças russas na região.
Este é um exemplo do intrincado tecido político sobre os escombros da guerra.

Outro foi um incidente ocorrido num posto de controle em Hasakah (norte), no qual sírios atacaram um comboio remanescente de forças dos EUA nesta quarta.

Os americanos então mataram um garoto de 14 anos. Forças russas na região tiveram de intervir, segundo o Ministério da Defesa em Moscou, evitando a escalada da situação.

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