Sem polícia, reduto de Evo desafia autoridade de governo interino na Bolívia

Ex-presidente conta com região cocaleira, onde sua imagem é onipresente, para retomar poder

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Chimoré (Bolívia)

O Chapare, região que projetou Evo Morales à Presidência da Bolívia, foi também onde ele passou as últimas horas no país antes de voar para o exílio. Agora, o ex-mandatário conta com as organizações cocaleiras para retomar o país —ou, ao menos, ter poder de barganha como força opositora.

“Em qualquer momento, estarei na Bolívia, em Chimoré e na zona do trópico de Cochabamba”, discursou Evo, via ligação de telefônica, para algumas centenas de cocaleiros no 13º Congresso da Federação das Mulheres Interculturais, no início de janeiro.

Placas com a imagem do ex-presidente Evo Morales na estrada para Chimoré, na região do Chapare, reduto eleitoral do ex-presidente boliviano 
Placa com a imagem do ex-presidente Evo Morales na estrada para Chimoré, na região do Chapare, reduto eleitoral do ex-presidente boliviano  - Lalo de Almeida-8.jan.20/Folhapress

“Pátria ou morte, venceremos! Quando, carajo?”, gritava Evo. “Agora”, respondiam em coro os cocaleiros, reunidos em um ginásio de esportes, onde a Folha era o único meio de comunicação presente. “Voltaremos como governo, com o processo de mudanças”, prometeu, antes de se despedir.

Localizado no centro do país, o Chapare faz parte do trópico do departamento de Cochabamba, onde vivem cerca de 50 mil famílias de cocaleiros, na grande maioria migrantes que chegaram do altiplano à região a partir da década de 1980.

Sob Evo (2006-19), a violenta repressão às plantações de coca deu lugar a uma política de legalização do cultivo. Por outro lado, a administração do sistema ficou a cargo da centenas de sindicatos fiéis ao ex-presidente e que, por meio do “controle social” da produção da coca, exercem grande poder na vida dos agricultores.

Nos dias em que a reportagem esteve na região, o Chapare parecia seguir a sua rotina após os confrontos que se seguiram à partida de Evo, em 11 de novembro.

Ao longo da rodovia que passa por Chimoré —a mais importante do país, ao ligar La Paz a Santa Cruz—, ambulantes e restaurantes disputavam a atenção dos motoristas. 

Em alguns trechos, longas filas se formavam enquanto uma empresa chinesa trabalha na duplicação da estrada sinuosa, onde cada curva é um cemitério de pequenas cruzes sinalizando acidentes fatais.

No centro de armazenamento de coca de Chimoré, trabalhadores das federações ensacavam as folhas em bolsas de 23 kg, que depois seriam levadas ao mercado autorizado, na cidade de Cochabamba, a maior da região. 

A onipresença de Evo em fotos nas placas de governo e em inscrições da campanha de outubro faz esquecer que ele já não é presidente. Às vezes, o tom se aproxima da devoção. Na parede da federação cocaleira de Chimoré, lê-se: “A vida de Evo não é de Evo. É do povo”.

Em outras partes da Bolívia, o personalismo do governo Evo tem sido alvo de seus opositores e do governo interino liderado pela senadora e presidenciável Jeanine Añez

Na cidade natal de Evo, Orinoca, um museu de cerca de US$ 7 milhões construído para contar a história do cocaleiro que se tornou presidente foi fechado. Em outras cidades, bustos foram arrancados e inscrições nas paredes, vandalizadas.

A paz no Chapare tem mais ares de trégua em meio à expectativa para a eleição presidencial de maio. Junto com El Alto, cidade vizinha a La Paz, o departamento de Cochabamba foi palco dos confrontos mais violentos entre apoiadores de Evo e forças de segurança.

 

No episódio mais sangrento, ocorrido em 15 de novembro, nove cocaleiros do Chapare foram mortos a tiros durante um confronto com policiais e militares, perto de Cochabamba.

Toda a região está sem força policial desde 11 de novembro, quando cocaleiros depredaram nove prédios da Polícia Nacional, que apoiou os protestos que levaram à saída de Evo. Com os ataques, todos os 180 policiais lotados da região se retiraram para Cochabamba.

Tratou-se de uma resposta ao incêndio criminoso na véspera, em Cochabamba, da sede das seis federações cocaleiras, das quais Evo segue como líder máximo. Sem a ação dos bombeiros, supostamente impedidos de se deslocar, todos os cinco andares acabaram destruídos.

Ao contrário do Brasil, em que uma greve policial desata o caos pelas cidades, não houve uma explosão da criminalidade. À exceção dos bancos, nenhum comércio fechou as portas por insegurança. Moradores disseram que não tomaram precauções extras de segurança. 

Em uma região com tanta influência dos sindicatos, que possuem até a sua polícia  —homens armados com cajados—, os morados afirmam que o grande problema da falta de polícia está no atendimento aos acidentes de trânsito na rodovia.

“A cidade está muito tranquila, digo até que a população está mais segura sem a polícia”, disse à Folha o prefeito de Chimoré, Silveriano Lara, do MAS (Movimento ao Socialismo), o partido de Evo. “Eles fazem autocontrole, averiguam. Quando alguém assume essa responsabilidade, eles deixam de fazer isso.” 

O setor mais prejudicado talvez seja o do turismo —o clima tropical do Chapare atrai turistas bolivianos que querem fugir do frio do altiplano. Os hotéis estão mais vazios, e um deles, o Victoria Resort, foi incendiado por pertencer ao senador e ministro interino de Governo, Arturo Murillo.

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