Separatismo de partido vitorioso na Irlanda pode levar a volta da violência

Sucesso de Sinn Féin se explica em parte por descontentamento popular, diz cientista político

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Bruxelas

Nem o próprio Sinn Féin esperava liderar a preferência dos irlandeses nas eleições parlamentares do último final de semana. Após três grandes derrotas desde 2018, a reviravolta era tão improvável que o partido lançou apenas 47 candidatos para os 160 lugares da Assembleia Nacional.

Comparado por analistas a um terremoto, o resultado desmentiu também o clichê “é a economia, estúpido”, deixando para trás o governo que tirou o país da bancarrota em 2010, recuperou o crescimento em uma década e levou a Irlanda ao pleno emprego.

“O que o eleitor está dizendo é que o crescimento econômico precisa se transformar em melhores serviços públicos”, diz o cientista político irlandês Bill Kissane, especialista em democracia e em história da Irlanda e professor da London School of Economics.

Bill Kissane, graduado e mestre em ciência política pelo Trinity College e doutor pela London School of Economics, onde leciona desde 1998 no Departamento de Governo. É autor de livros sobre a guerra civil irlandesa e especializado em democratização e história da Irlanda
Bill Kissane, 54, é graduado e mestre em ciência política pelo Trinity College e doutor pela London School of Economics, onde leciona desde 1998 no Departamento de Governo. É autor de livros sobre a guerra civil irlandesa e especializado em democratização e história da Irlanda

O fenômeno ainda terá que ser estudado, diz ele, mas o resultado parece indicar um voto de protesto de eleitores que “estão pagando muito imposto por um longo período de tempo e recebendo um serviço público comparável ao de países pobres”.

É um descontentamento registrado no começo deste mês por pesquisa do instituto Ipsos, na qual 63% dos eleitores disseram não ter sido beneficiados pelo crescimento da economia, e atinge principalmente os mais jovens, pressionados pela alta nos preços de moradia.

De 2011 a 2019, foi construída só uma nova habitação para cada sete novos habitantes, e os aluguéis subiram 40% nos últimos cinco anos, enquanto os salários aumentaram 14%.

Investimento em moradia, saúde e transporte foram os principais temas da campanha do Sinn Féin, que levou só 12% dos votos dos maiores de 65 anos, mas um terço dos que têm menos de 35 anos. São justamente os mais jovens os que têm menos memória da luta armada pela unificação da ilha, que deixou mais de 3.600 mortos nas décadas de 60, 70 e 80.

Mas o fantasma do conflito não está afastado, segundo Kissane. Apesar do perfil modernizado de Mary Lou e da campanha que omitiu a questão ideológica, a primeira declaração da líder do Sinn Féin foi por um referendo sobre as fronteiras, aponta o professor.

“Não dá para confiar que haja paz estabelecida, e uma votação sobre a fronteira vai dividir o país em dois. É uma questão de preto ou branco, e mesmo que seja uma minoria os interessados em usar a força, o clima será de confronto.”

Mary Lou McDonald, líder da legenda irlandesa Sinn Féin, dá entrevista no dia da eleição na qual partido teve vitória surpreendente Ben Stansall - 8.fev.2020/AFP
Mary Lou McDonald, líder da legenda irlandesa Sinn Féin - Ben Stansall - 8.fev.2020/AFP


Vinte anos depois do acordo de paz em Belfast, ainda há ligação entre o Sinn Féin que venceu a eleição neste mês na Irlanda e o IRA que matou milhares em ataques terroristas?
Na Irlanda do Norte, Sinn Féin e IRA estão totalmente conectados. Antigos membros do movimento continuam no partido, e qualquer pessoa que apoie a campanha do IRA vota no Sinn Féin. Mas não são idênticos, e a face política tem se fortalecido.

E na República da Irlanda? A própria Mary Lou McDonald é de uma geração que não participou do IRA.
Foi muito útil para o Sinn Féin que Mary Lou McDonald fosse a líder, porque ninguém pode conectá-la ao IRA, como ocorria com o presidente anterior, Gerry Adams. É uma líder muito mais aceitável para a parte sul da ilha. E o Sinn Féin atraiu muito apoio dos jovens irlandeses, que não têm nenhuma lembrança do que foi o conflito na Irlanda do Norte.

Ainda assim, a opinião pública está dividida na Irlanda. Parte enxerga o Sinn Féin como um problema, mas defendem que o processo democrático precisa continuar.

O sucesso eleitoral pressiona para que eles sejam aceitos?
Indica que em algum momento eles precisam ser incorporados ao sistema, chegar ao governo. A questão é se vai acontecer agora ou depois da próxima eleição. O momentum do Sinn Féin é tão forte, e seu apoio em alguns distritos e entre os jovens é tão grande que eles vão abrir a porta.

O Sinn Féin só não ganhou mais assentos nesta eleição porque não lançou candidatos suficientes. Uma nova eleição favoreceria o partido, que lançaria mais nomes?
Sim, principalmente no curto prazo. Se não conseguirem formar um governo agora e forem excluídos de um governo formado pelos outros dois grandes partidos, vão poder se mostrar como vítimas do establishment. Esse já foi um tema da campanha. Mary Lou não tinha sido chamada para os debates de TV, até que os principais canais se dessem conta de seu crescimento, a uma semana da eleição. O Sinn Féin foi capaz de jogar o jogo do outsider e de criticar o status quo.

E se a próxima eleição for só daqui a cinco anos?
É difícil dizer, porque um dos aspectos interessantes desta eleição —e muito difícil de explicar— é como um partido que era extremamente impopular entre o eleitorado há um ano conseguiu reverter totalmente o quadro.

Alguns analistas atribuíram a virada à campanha que deixou de lado a unificação e priorizou problemas crescentes na Irlanda, como moradia.

O foco em políticas sociais não é uma surpresa, o Sinn Féin é identificado com as classes trabalhadoras. O que parece ter acontecido é que o governo de Leo Varadkar fracassou em entender o humor do eleitorado. A mensagem era a de que houve recuperação econômica, o país está em pleno emprego. Mas as pessoas não sentem os benefícios disso, e o Sinn Féin soube explorar essa insatisfação.

Mas não houve um abandono da causa ideológica. No minuto em que ficou claro o sucesso eleitoral, Mary Lou McDonald imediatamente voltou o debate para a unificação da Irlanda.

No governo, o que devem priorizar?
Se o partido conseguir formar um governo e for incapaz de resolver os problemas dos serviços públicos, vão se voltar com força para os ideais nacionalistas e tentar distrair a atenção dos irlandeses para o fato de que eles estão pagando muito imposto por um longo período de tempo e recebendo um serviço público comparável ao de países pobres.

O Sinn Féin no governo vai sofrer a pressão normal da mídia. A mídia vai escrutinar o governo. É preciso lembrar que nenhuma dessas pessoas esteve no poder, nenhuma tem qualquer experiência executiva, estão começando do zero.

Alguns de seus políticos são admiráveis, mas não será fácil resolver questões como a reforma do serviço público de saúde, que os governos irlandeses vêm tentando fazer há 30 ou 35 anos.

Mary Lou McDonald já provou ser midiática. Ela terá habilidade política para governar?
Ela nunca foi testada. É capaz, esforçada e muito séria, mas tende a exagerar os argumentos e não está claro qual o grau de influência sobre ela da facção mais dura do partido.

E para governar o Sinn Féin precisará se coligar com partidos com os quais nunca se uniram antes. Há desafios, requer um tempo de aprendizado.

O que é claro é que esta eleição quebrou o padrão irlandês e de agora em diante temos um sistema triparditário, e o Sinn Féin não pode ser deixado de lado de um governo no futuro.

Quanto do sucesso do Sinn Féin pode ser explicado pelo cansaço com a política tradicional e a busca de um “outsider”, como em outros países?
Não dá para dizer que seja um caso clássico de outsider populista se opondo ao establishment. Eles não falaram sobre imigração, brexit, União Europeia. O Sinn Féin se enxerga como um partido progressista de esquerda, ideologicamente não fazem parte da família populista. Ao mesmo tempo é evidente que eles usam esse discurso antiestablishment para ganhar poder.

Mas nós cientistas políticos ainda não sabemos o que foi que aconteceu nesses últimos sete ou oito meses. O próprio Sinn Féin foi surpreendido com o sucesso. Perceberam uma onda no humor do eleitorado que ninguém mais havia percebido, e aproveitaram o vento a favor.

É um sinal de fadiga de sistemas bipartidários?
O que dá para dizer é que os eleitores irlandeses não foram capazes de atribuir ao governo de Leo Varadkar os pontos fortes de seu desempenho: ter se saído bem nas negociações do brexit, ter feito reformas sociais progressistas em relação ao aborto e ao casamento gay e ter entregado recuperação econômica e baixo desemprego.

Não houve consciência retrospectiva, a campanha não foi um julgamento dos atos do Fine Gael quando esteve no poder. É um problema para a democracia que a política esteja sendo pensada em termos da “não realidade”.

Por que o eleitor não premiou o desempenho do governo?
Um dos motivos do sucesso do Sinn Féin talvez seja o fato de que os jovens foram votar, enquanto no passado eles simplesmente ficavam em casa.

A campanha pelas mídias sociais teve papel nessa mobilização?
Algo que ficou claro é que os partidos tradicionais não conseguiram impor sua pauta na campanha eleitoral, mesmo tendo tirado o país de uma situação de falência em 2010 para uma de pleno emprego e crescimento em 2020.

A mídia tradicional não apoiava o Sinn Féin, o que indica que a comunicação aconteceu fora dos canais tradicionais.

E o que o eleitor está dizendo é que o crescimento econômico precisa se transformar em melhores serviços públicos, em um mercado imobiliário acessível, melhor transporte. A mensagem é que a qualidade de vida é importante, principalmente para os jovens que precisam pagar hoje um aluguel que é o dobro do que pagavam há dez anos.

Não acho que seja um voto irresponsável, mas ainda assim é um voto no desconhecido. E, queiramos ou não, os próximos 30 anos de política irlandesa serão dominados pela discussão sobre a unificação e sobre a relação com a Irlanda do Norte.

Cresce a chance de conflito?
O espírito do acordo de paz era o de desenvolver relações com os britânicos, com os unionistas [que defendem a permanência no Reino Unido] da Irlanda do Norte, e entre os diferentes grupos da Irlanda do Norte. Isso vai ficar mais difícil, porque o Sinn Féin está tomando a decisão mais radical ao falar em referendo.

O acordo de paz, no entanto, exige maioria dos dois lados. O que aconteceria na Irlanda do Norte?
Pode haver um grande choque, pois, se ela conseguir mobilizar os republicanos [que querem a separação do Reino Unido], automaticamente haverá uma contramobilização dos unionistas.

Há duas formas de tratar da reunificação irlandesa. Uma era a silenciosa, esperando que no longo prazo a demografia do norte mudasse tão significativamente que a união da ilha fosse inevitável. O Sinn Féin está escolhendo a outra, chamando imediatamente um referendo quando eles nem sabem se conseguirão apoio suficiente no norte.

Vai ser um trajeto turbulento.

Ou eleitorado irlandês vai ter que decidir se quer seguir o Sinn Féin e quebrar o equilíbrio que havia se instalado nas relações anglo-irlandesas desde os anos 1980.

Há risco de volta da violência?
As relações evoluíram dentro da Irlanda do Norte, mas isso leva tempo, e não sei se tivemos o necessário. Muitos querem a paz, e em eleições anteriores partidos que não demonstravam compromisso claro com o compartilhamento de poder foram punidos. Essa foi uma das razões pelas quais tanto os unionistas quanto o Sinn Féin aceitaram voltar ao governo, para evitar que seus votos escoassem para os partidos moderados.

Não dá para confiar que haja paz estabelecida e a violência pode voltar, principalmente com referendos sobre a fronteira.

É uma questão de preto ou branco, que vai dividir a comunidade inteira. E mesmo que seja uma minoria interessada em usar a força, o clima será de confronto.

É muito difícil prever. Muitos acreditam que não existe a chance de voltarmos para os anos turbulentos [The Troubles, como são conhecidos em inglês], mas isso não levava em conta a possibilidade de referendos.

A unificação é possível?
Se vier, precisa ser algo de longo prazo, deliberado. O interessante é que Mary Lou McDonald fala essa linguagem, ela entende a importância da cautela, de que exista um consenso firme para a unificação. Nós vimos o que o brexit fez com a Inglaterra e com o Reino Unido, nós sabemos que o referendo pode desestabilizar as coisas. Mas o Sinn Féin precisa se justificar com seu eleitorado.


Entenda

O que é IRA? Sigla em inglês de Exército Republicano Irlandês. O nome foi usado por grupos paramilitares desde o começo do século 20, primeiro em combate pela independência irlandesa e depois em ações pela unificação das Irlandas

Qual a ligação entre Sinn Féin e IRA? Historicamente houve diferentes graus de ligação entre grupos do partido e dos movimentos paramilitares. A atual formação do Sinn Féin (“nós mesmos”, em irlandês) se consolidou a partir de 1969 como braço político do IRA Original, uma subdivisão do IRA formada em 1921 para combater o tratado anglo-irlandês

Ainda há movimentos terroristas? Em 1998 foi firmado um acordo de paz que mantém a Irlanda do Norte ligada ao Reino Unido. Em 2011, uma facção do IRA declarou a intenção de retomar ações hostis e assumiu a autoria de ataques e assassinatos políticos

O que aconteceu nas eleições? Pela primeira vez em cem anos, o Sinn Féin obteve a maior parcela de votos (24,5%), deixando em terceiro lugar o partido do premiê Leo Varadkar, o Fine Gale (20,8%). O Fianna Fáil, que formava uma aliança com o Fine Gale, ficou em segundo, com 22,1% dos votos. Para chegar ao governo, o Sinn Féin terá que fazer coligações.

Um governo do Sinn Féin defenderá a unificação? A presidente do partido declarou que convocará um referendo nos próximos cinco anos. Pelo acordo de paz, a unificação depende de aprovação da maioria dos eleitores das duas partes da ilha

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